Era 14 de março de 1972, quando Salvador parou para prestar homenagens no enterro de Cosme de Farias. Estimativas de jornais da época indicam que cerca de cem mil pessoas acompanharam o cortejo até o cemitério Quinta dos Lázaros, ou seja, 10% da população da capital no período. Morto dias antes de completar 97 anos, o ??pai dos pobres?, como é conhecido por muitos, fez história, defendendo na Justiça os mais desfavorecidos. Nesta semana, seu falecimento completou 50 anos e nada mais justo do que lembrar os feitos desta importante figura baiana.
Manifestação de gratidão é como a jornalista e doutora em História Mônica Celestino caracteriza o funeral do Major Cosme. Na ocasião, seu caixão foi levado de mão em mão da Igreja de São Domingos de Gusmão, no Pelourinho, até o cemitério. ??Entre autoridades, populares, prostitutas, ladrões que tinham sido defendidos por ele, todos foram as ruas para a missa de corpo presente. Em seguida, o cortejo saiu?, conta.
Multidão acompanha o velório de Cosme de Farias em março de 1972 (Foto: Reprodução) |
O que tornou Cosme de Farias tão querido e admirado pelos baianos foi a sua defesa da liberdade, em diversas frentes. Mesmo sem ter cursado o ensino superior, o homem nascido em São Tomé de Paripe atuou nas funções de advogado, estando presente em mais de 30 mil processos, sendo considerado o ??campeão de habeas corpus da Bahia?.
Um dos feitos mais célebres na Justiça foi o processo de libertação de Dadá, esposa do cangaceiro Corisco, em 1942. Suas ações foram reconhecidas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que realizou a entrega simbólica de Carteiras da Ordem à sua família, na quarta-feira (16). Em agosto do ano passado, a OAB Bahia já havia legitimado os serviços de Cosme de Farias ao conceder o título póstumo como advogado.
O conselheiro da OAB-BA e relator da proposta que deu o título ao Major, Luís Vinícius Aragão, explica que antigamente era comum que pessoas advogassem sem serem graduados em Direito, os rábulas. ??Se você for pegar uma Bahia da década de 40, tínhamos um estado pós-abolição incompleta. Pois foram negados aos negros acesso à educação e trabalho, criando uma categoria de subcidadãos […] Cosme de Farias defendia o povo subalterno e pobre?, afirma Luís Vinícius.
Cosme de Farias e Irmã Dulce (Foto: Arquivo CORREIO) |
Educação
Outra frente em que Cosme de Farias atuou foi na luta contra o analfabetismo no estado. Militante na área da educação pública, abriu em 1915, em conjunto com parceiros, a Liga Baiana Contra o Analfabetismo. O programa atendeu a população mais desassistida de Salvador até meados da década de 70. Apesar de não ter tido filhos biológicos com a mulher com quem se casou, Semíramis Farias, ele apadrinhou muitas crianças ao longo da vida.
Uma delas foi Creuza Carqueija, que hoje em dia luta pela preservação da memória do avô. Ela conta que Cosme de Farias chegou a criar cerca de 200 escolas improvisadas em casas de outras pessoas, que lecionavam para os jovens da periferia. ??O homem que iniciou uma campanha contra o analfabetismo no Brasil não merecia outra coisa senão uma neta que estudasse para ser professora?, afirma.
Fotografia do Major Cosme mais novo (Foto: Reprodução) |
Creuza conviveu com o avô de criação até os seus 15 anos. Sua lembrança mais forte de Cosme é a habilidade que ele tinha com as palavras. Não à toa ele atuou como jornalista e também foi poeta. ??Uma coisa que não dá para esquecer é aquela voz embargada. Ele falava com muito carinho, mas com certeza do que estava dizendo?, relembra a neta.
Também durante os anos 70, Cosme de Farias foi opositor da Ditadura Militar, tendo morrido enquanto estava no cargo de deputado estadual pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). A jornalista Mônica Celestino explica que, apesar da alcunha de major, ele nunca seguiu carreira militar, tendo ganhado o título de amigos.
??Ele foi major da Guarda Nacional, criada no Império para combate. Mas com o tempo, ela vai se esvaziando e, para se manter, passa a vender títulos oficiais. No início do século XX, um grupo de amigos se reúnem e compram esse título para homenagear o Major. Ele, portanto, nunca teve armas e não tinha nem farda. Tomou uma de empréstimo para tomar posse do título na solenidade?, destaca a jornalista.
Alguns anos antes de morrer, na década de 60, Cosme de Farias se mudou para a então Quinta das Beatas, que se tornou o bairro Cosme de Farias, em sua homenagem. Até hoje moradores do local lembram com carinho do Major. ? o caso de Rui da Cuica, um senhor de 70 anos que está à frente de um programa socioeducativo no bairro.
No Carnaval de 2020, Rui levou o bloco Tempero Negro às ruas de Salvador, levando consigo um busto de Cosme de Farias. O monumento foi um presente da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. ??Ele foi muito importante porque criou a Liga Contra o Analfabetismo e porque ele servia os pobres e os favelados. Até o dinheiro que recebia ele distribuía para os pobres na escada da Câmara?, diz Rui. De fato, o empenho em cuidar dos outros fez com que o major levasse uma vida simples.
Cosme de Farias também foi jornalista e poeta (Foto: Reprodução) |
Semana de homenagens aos 50 anos do falecimento de Cosme de Farias
Na passagem das cinco décadas de morte do Major Cosme de Farias, homenagens têm sido realizadas para relembrar os feitos do rábula e político. Ela teve início na segunda-feira (14) e será finalizada nesta sexta-feira (18), com uma reunião de admiradores em frente ao busto da figura, na Praça Cosme de Farias, às 9h30.
Além disso, também na sexta, será aberta a exposição ??O Rábula da Democracia e Alfabetismo?, no Espaço Cultural da Câmara de Vereadores. A mostra seguirá aberta para visitação até o dia 28 de março, das 10h às 16h, e contará com fotografias de Anízio de Carvalho, pinturas de Bel Borba, Raimundo Santos Bida, entre outros.
Durante a semana, na terça (15), uma missa foi celebrada na Igreja São Francisco em sua homenagem. Na quarta (16), a OAB fez a entrega de Carteiras da Ordem e uma mesa-redonda debateu os feitos do Major, no Centro de Cultura da Câmara Municipal de Salvador. A programação tem apoios da Rede Bahia, Instituto ACM, Fundação Gregório de Mattos e Câmara de Vereadores.
*Com orientação da subeditora Fernanda Varela.
Comentários Facebook