Os filhos e filhas de santo do terreiro Okutá de ??gún, a Casa de Ogum, no Candeal, vestiram as melhores roupas e prepararam o templo para uma cerimônia especial, nesta segunda-feira (13). Com cerca de 200 anos de história o terreiro foi tombado como patrimônio histórico de Salvador, pela Prefeitura, por meio da Fundação Gregório de Mattos (FGM). O evento contou com a presença de autoridades públicas e do cantor e compositor Carlinhos Brown.
O processo de tombamento começou em 2019. A cerimônia teve cânticos e orações, e um dos momentos mais emocionantes foi quando a Mãe Didi, a matriarca da casa que vai completar 103 anos no dia 24 de junho, segurou a certidão de tombamento nas mãos e observou com a atenção as palavras ali escritas.
???Me sinto honrada de chegar a esta idade ainda à frente desse espaço tão valioso para todos nós. Tenho a felicidade de participar de um momento ímpar com a lucidez garantida por Deus e os orixás???, afirmou a matriarca.
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Mãe Didi e prefeito Bruno Reis durante evento (Foto: Arisson Marinho/ CORREIO) |
Na prática, o tombamento significa a preservação da história do bem ou tradição que está sendo tombado. O prefeito Bruno Reis disse que o objetivo é salvaguardar as riquezas materiais, imateriais e arquitetônicas da cidade e contou quais são os critérios levados em consideração para selecionar os terreiros que serão contemplados.
???A história e a importância do trabalho religioso, somado ao trabalho social e a influência que a casa tem nas comunidades. A gente vem reconhecendo os terreiros pela sua história e pelo tempo de existência. Então, a gente procura valorizar e tombar aqueles terreiros que são mais antigos e que tem uma tradição maior na nossa cidade???, disse.
Durante o evento, ele assinou a ordem de serviço para requalificação do campo de futebol da comunidade. A contratação dos serviços é de responsabilidade da Secretaria Municipal de Promoção Social, Combate à Pobreza, Esportes e Lazer (Sempre), e envolve a implantação de grama sintética e manta de embasamento granular. A obra está orçada em R$ 447 mil e tem prazo de conclusão de 90 dias.
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Carlinhos Brown destaca a importância da luta contra a intolerância religiosa (Foto: Arisson Marinho/ CORREIO) |
História de amor
Tudo começou quando uma princesa nigeriana se apaixonou por um negro que era escravizado. Ela comprou o terreno onde hoje fica o terreiro e libertou o rapaz. Eles realizaram o primeiro casamento na Igreja de Brotas e, ao oficializar a união no Brasil, passaram a ser chamados por Manoel Mendes e Josepha de Sant???Anna, conforme os ritos de batismo da Igreja Católica.
O marido presenteou a esposa com uma pedra, chamada Okutá, que havia trazido de África. O objeto, que era do tamanho de uma semente de jaca, vem crescendo ao longo do tempo. Segundo a prefeitura, a Casa de ??gún é o único espaço de culto à divindade no Brasil, seguindo e mantendo os mesmos ritos como ocorre em África, onde cada região cultua uma divindade da diáspora africana.
O cantor Carlinhos Brown participou da cerimônia, fez saudações ao orixá e disse que o tombamento é uma forma de defender o terreno da especulação imobiliária e de reafirmar a luta contra a intolerância religiosa.
???Essa pedra que está aqui há mais de 300 anos na história da cultura baiana e brasileira. Hoje isso se condensa através de uma visão que é necessário preservar os nossos costumes e a força que essa identidade tem. Eu não seria nada e a Timbalada não seria nada, nada do que nós vivemos aqui sobre batuques e poesias seria nada sem isso???, disse.
A Casa de Ogum fica na praça Alcebíades Damasceno, cercada por residências, e trechos de áreas verde. Nesta segunda-feira, o espaço ficou pequeno para a quantidade de público. Os filhos e filhas de santo mais novos disseram que o tombamento representa a continuidade dos trabalhos.
Religiosos de outros terreiros estiveram no local para festejar junto com os irmãos, como foi o caso do Babá Mambá, do terreiro Pilão de Prata, no Curralinho. ???A relevância dessa ação sobretudo é a de resistência. Estamos aqui representando um legado ancestral. A cada momento e a cada palavra é um resgate de identidade negra, por isso vim prestigiar esse momento???, disse.
No final da cerimônia houve festa, com direito a música, banho de pipoca e muita dança. Mãe Didi acompanhou tudo sentada, rodeada por filhas de santo, enquanto religiosos e visitantes acompanhavam com palmas o compasso dos atabaques e agogôs. Antes do Okuta de Ogum, a prefeitura já havia tombado outras duas casas de matriz africana, o Ile A??é Kalè Bokùn, em Plataforma, e o Vodun Kwe To Zo, no Curuzu.
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Esse foi o terceiro terreiro tombado pelo Município (Foto: Arisson Marinho/ CORREIO) |
Processo
Esse foi o terceiro terreiro tombado pelo Município, desde 2014, além da Pedra de Xangô, em Cajazeiras, considerada um templo sagrado para o povo de santo. O presidente da Fundação Gregório de Mattos, Fernando Guerreiro, contou que existe um conselho responsável pelo estudo de cada bem ou tradição candidata ao tombamento, e que no momento outro terreiro está em processo para se tornar um patrimônio histórico.
???A escolha depende de uma avaliação técnica feita por um conselho formado por vários representantes ligados a área do patrimônio e cultural. Um técnico faz um dossiê, que pode ser um antropólogo, historiador, sociólogo, enfim, às vezes mais de um. ?? construída uma defesa de cerca de 30 páginas que precisa ser aprovada pelo conselho e assinada pelo prefeito. No momento, temos outro terreiro em processo de tombamento, mas não posso comentar porque o estudo está em andamento???, afirmou.
No caso da Casa de Ogum a solicitação de tombamento foi formulada pela Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA). Mãe Luiza Mangabeira, representante do terreiro, disse o reconhecimento é uma forma de preservar a religião.
???Está ocasião é um momento ímpar, um momento de conquista não só do espaço da Casa de Pai Ogum, mas da comunidade e de todo o povo de santo. Essa é uma luta de resistência, fé e perseverança. Agradecemos a ancestralidade, a Exu e em especial ao nosso patrono, pai Ogum???, disse.
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