Comerciantes de Bonito de Minas, uma das cidades mais pobres do Brasil, encontraram uma forma inusitada de aumentar as vendas: compraram ônibus para buscar na roça os principais clientes: trabalhadores rurais, aposentados e pensionistas que não têm condições de bancar passagens caras até a cidade. Os veículos cruzam dezenas de quilômetros de estradas de terra empoeiradas e vão a povoados distantes atrás dos ??passageiros?, que viajam de graça. Na sede do município, além das compras de mantimentos da semana ou do mês, eles aproveitam para receber benefícios no banco, pagar contas, ir ao médico e resolver outros assuntos.
Como revela série de reportagens do Estado de Minas, o transporte tem papel preponderante na vida das pessoas, mas a dependência do serviço é maior ainda entre moradores de municípios mais pobres, onde, por outro lado, a população paga mais caro pelos combustíveis. E é exatamente o que acontece em Bonito de Minas. Com 11,5 mil habitantes, tem o terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado: 0,537. Considerando todos os 5.565 municípios brasileiros, fica entre os 220 com IDH mais baixo.
A iniciativa dos comerciantes rende um lucro a mais para eles, além de ser um facilitador para os moradores mais carentes da zona rural de Bonito de Minas, que tem um a extensão territorial de quase 4 mil quilômetros quadrados – 2,5 vezes o tamanho do território do município de São Paulo. Se não fossem os ônibus de graça, eles teriam de desembolsar valores para pagar passagens que pesam no orçamento doméstico. Nesses tempos em que os preços dos combustíveis aumentaram significativamente, as tarifas estão ainda mais caras, o que inviabilizaria as viagens rotineiras até a cidade.
Após a recente redução na alíquota de tributos sobre o produto por parte dos governos federal e estadual, o preço do litro da gasolina em Bonito de Minas, que em junho chegou a quase R$ 8, caiu para R$ 6,35 neste mês. Mesmo assim, continuou em patamar mais alto do que o das cidades mais ricas, como Belo Horizonte, onde o preço da gasolina baixou para menos de R$ 6. No município carente, o óleo diesel não teve redução e estava bem mais alto, sendo vendido a R$ 7,96 o litro.
A ideia de buscar os clientes em casa é inovadora na região. Em outras cidades de baixa renda do Norte de Minas, os comerciantes do ramo de alimentos fazem entregas de feiras na zona rural e acabam sendo altamente impactados pela oscilação no preço dos combustíveis. Em Bonito de Minas, os varejistas inverteram a lógica. Se os clientes não têm dinheiro para pagar transporte até a cidade, os ônibus vão buscá-los.
As viagens obedecem a um cronograma compatível com o calendário dos pagamentos das aposentadorias e de benefícios sociais. Ao longo do mês são atendidas 44 comunidades rurais do município, com os veículos deslocando até 45 quilômetros da sede do município e fazendo duas viagens por dia à zona rural, buscando e levando os moradores. Na volta para a casa, são acompanhados por caminhões, também de propriedade dos comerciantes, que levam as mercadorias compradas pelos clientes.
O sistema do transporte dos moradores da zona rural de ônibus e de entrega das mercadorias em caminhões é mantido por dois supermercados de Bonito de Minas. Outro estabelecimento na cidade oferecia o serviço, mas, devido ao aumento de custo, após a pandemia do coronavírus, optou por manter apenas as entregas das feiras.
Tábua de salvação
As viagens dos ônibus começam bem antes do sol nascer e são uma verdadeira saga pelo sertão. O Estado de Minas acompanhou uma delas, para mostrar como é cheia de desafios a vida desses moradores de baixa renda que vivem em localidades distantes no Norte do estado. O coletivo saiu da cidade antes de 4h, ainda no meio da escuridão, em direção à comunidade de Cabeceira do Borrachudo, a 35 quilômetros. No caminho, também buscou moradores de Salto do Borrachudo. As duas comunidades estão entre os lugares mais carentes do município.
A viagem na estrada de terra é uma sequência de obstáculos, com buracos, bancos de areia, poeira e curvas perigosas. O ônibus sacoleja do começo ao fim da jornada, mas nada disso desanima os passageiros, a maioria mulheres. Para essas pessoas, o sistema de transporte gratuito virou uma tábua de salvação. Sem ele, a situação seria bem pior. ??Esse serviço foi um alívio pra gente. Era muito difícil pra gente ir até a cidade?, afirma Terezinha Pereira Santana, de Salto do Borrachudo. Beneficiária do Programa Auxílio Brasil, ela recebeu R$ 400 na primeira quinzena de julho. Terezinha lembra que, sem dinheiro para pagar um carro particular, ela fazia a cavalo o trajeto de 32 quilômetros entre Salto do Borrachudo e a cidade. ??Eram três horas para ir e três para voltar?, relata.
A aposentada Eremita Neves da Silva, de 75, também moradora de Salto do Borrachudo, diz que o serviço gratuito criado pelos comerciantes melhorou sua vida. ??Foi muito bom, pois falta dinheiro para gente vir à cidade. O lugar que a gente mora é muito isolado?, conta. A filha dela, Maria Marcilene Neves Santana, de 33, também usa o ônibus e não esconde a realidade que vive. ??Tem dia que a gente vem à cidade e falta dinheiro até para o lanche?, afirmou. Mãe de quatro filhos e beneficiária do Auxílio Brasil, ela disse que a situação dos moradores piora nesta época de seca, pois não tem como plantar e encontrar serviço no campo. O marido, Lindomar Rodrigues Santana, de 45, está sem emprego e sem renda.
Custo ainda alto
Dulvânia Neves da Silva, de 19, agradece. ??O dinheiro que iria gastar com o transporte a gente pode usar para comprar coisas de maior necessidade?, revela. Assim como Marcilene, ela disse que recebeu R$ 400 do benefício do governo em julho e economizou R$ 50 não tendo que pagar pela passagem de Salto do Borrachudo a Bonito.
Moradora da mesma localidade, Juliane Lopes da Silva, de 25, também foi à cidade em meados deste mês para receber o benefício governamental, levando no colo a filha Yasmin, de 1 ano. Ela reclamou que, mesmo com a gratuidade do transporte, o valor recebido, R$ 450, não foi suficiente para tudo que precisava. ??O dinheiro só deu para comprar as coisas básicas, não deu adquirir nada de mistura (alimentos como carne, frango e verduras). Os preços das coisas subiram demais?.
Companheiro de viagem de Juliane, o aposentado João Lopes Costa, de 62, conta que pagou ao supermercado R$ 650 ?? referente um a feira mês anterior, ficando devendo R$ 550 (da nova compra de mantimentos) para quitar no mês seguinte. Porém, ele disse que acabou gastando todos os R$ 1.212 que recebeu. ??Volto para casa sem nada. Está tudo muito caro. Só com carne e frango gastei R$ 250?, disse João Lopes, que adquiriu ainda ração para animais e algumas telhas para a casa.
Sistema surgiu por causa da concorrência
A concorrência motivou supermercados de Bonito de Minas a oferecerem o transporte de ônibus gratuito para clientes da zona rural. Quem conta é Geraldo Justino da Silva, dono do Cristo Rei. Ele afirma que quando abriu o negócio, há 20 anos, percebeu que a concorrência já atendia quase todos os moradores da cidade. Só lhe restava vender para a zona rural.
Foi o que ele fez. No entanto, constatou que as pessoas do campo encontravam dificuldade para transportar as compras. ??Havia quem carregava as feiras em lombo de cavalo ou que deslocava até a cidade para fazer feira em carro de boi?, relembra. Para amenizar a situação, ele adquiriu uma caminhonete e passou a entregar as mercadorias em localidades próximas da área urbana, com até 15 quilômetros de distância.
Porém, Geraldo Justino diz que, mesmo assim, os trabalhadores, aposentados e beneficiários de programas sociais da zona rural continuavam enfrentando uma via-crúcis para deslocarem até a cidade por causa da falta de linhas regulares de ônibus para atender as localidades onde residem e escassez de dinheiro para fretar carros. Diante do quadro difícil, há 10 anos, ele decidiu inovar e adquiriu um ônibus para transportar, gratuitamente, os clientes do campo até Bonito, mantendo as entregas das mercadorias sem nenhum aumento de custo para a clientela.
O ônibus faz 12 viagens por mês, passando em torno de 20 comunidades rurais. O estabelecimento conta também com dois caminhões. O dono do supermercado afirma que os moradores da zona rural respondem por 60% das vendas. ??Mas a gente também presta um serviço social com o transporte deles. Temos que ajudar os lugares onde as pessoas moram, que são carentes?, afirma Geraldo Justino, lembrando que muitas delas usam o coletivo dele em busca de consultas médicas e outros compromissos na cidade.
A ideia do comerciante foi seguida pelo principal concorrente, o supermercado D e D, que também adquiriu um ônibus para o transporte gratuito dos moradores da zona rural, fazendo a entrega das mercadorias em caminhões. Atualmente, o estabelecimento abrange moradores de 24 comunidades da zona rural.
Sustentabilidade
Proprietário do supermercado, o empresário Domingos Soares afirma ser necessário criar mecanismos para aumentar as vendas para as áreas mais distantes até mesmo como meio de sustentar o negócio. ??Só com os clientes da cidade não damos conta de manter o comércio. A gente precisa das pessoas da zona rural e de dar a elas condições de vir até a cidade para fazer as compras e levar as mercadorias?, destaca. Mas ele reclama do aumento dos custos do transporte. ??Não é somente o preço do óleo diesel que subiu. Tem também a despesa da manutenção dos ônibus e dos caminhões. Se a gente contabilizar todos os custos, podemos dizer que estamos trabalhando quase no vermelho?.
Um terceiro supermercado de Bonito de Minas, o Araújo, também criou o serviço de transporte de ônibus para moradores da zona rural, entregando as compras deles de caminhão. Mas, após a pandemia do coronavírus, o estabelecimento suspendeu as viagens de ônibus gratuitas, mantendo somente as entregas das feiras. ??O custo do transporte aumentou demais. Não estava compensando manter o serviço do ônibus?, alega Antônio Wellington Araújo, dono do estabelecimento. Ele afirma que com aumento de preços de produtos de primeira necessidade como óleo de soja, café, leite e de artigos de limpeza, pessoas de baixa renda reduziram as compras, afetando duramente o faturamento. ??Os custos do óleo diesel e do frete impactam muito nas mercadorias, desde a fábrica até o consumidor final?, observa Araújo.
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