‘Remédio’: Engenheiro é único em Salvador autorizado a plantar maconha em casa

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Na frente da casa de E.*, há uma horta orgânica com mudas de tomate que acabam de brotar em frutos. A outra plantação dele está longe dos olhos dos vizinhos e dividida em dois cômodos. Mantidas sob luz e temperatura controladas, 20 pés de maconha crescem. Nada é ilegal. O jardinheiro das hortaliças e da cannabis é o único de Salvador com autorização judicial para cultivar a planta que é o remédio dele. 

A decisão do juiz saiu em fevereiro deste ano. O engenheiro estava no trabalho quando saiu o veredito: estava autorizado a plantar maconha e circular com produtos derivados dela, como o óleo e a pomada, sem risco de ser preso. Ele gritou ao ler a sentença. Os colegas perguntaram o que tinha acontecido. ???Nada não???, respondeu E., que preserva a informação. A família o apoia. 

???Não quero ser ???o cara que planta maconha??????, justifica ele, diagnosticado com problemas reumatológicos que causam dores crônicas. 

A reportagem e dois advogados são os primeiros estranhos a entrar na casa dele. A sala tem o cheiro característico das plantas que crescem nos cômodos do segundo andar e agora, secas, estão em uma mesa de centro. Todos os dias, depois do café da manhã, E. toma uma colher de óleo de cannabis (nome científico da maconha), de aparência escura e textura viscosa.

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Produtos medicinais feitos em casa (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Depois de 20 minutos, receptores do corpo são encontrados pelos princípios da maconha. A agonia de E. é suavizada. Há uma lista de 26 doenças e sintomas que podem ser amenizados pelo tratamento com cannabis.

Leia mais: Pacientes baianos lutam para plantar maconha e produzir canabidiol

O Habeas Corpus (HC) preventivo concedido a E. é uma possibilidade jurídica encontrada por pessoas que usam cannabis medicinalmente. Como a planta é ilegal no Brasil, o instrumento evita riscos penais, mas é atendido na minoria das vezes, ainda que os pacientes possuam respaldo médico. 

O fato de E. ser o único, em Salvador, com respaldo legal para cultivar maconha é ilustrativo o suficiente. O plantio de cannabis para uso medicinal e científico é previsto no Brasil desde 2006.

???Esse é o meu remédio. Me sinto muito melhor hoje???, diz ele, enquanto segura plantas secas de cannabis. No mesmo cômodo, está uma cópia da decisão judicial que garante a legalidade do que vemos. Há outras cópias para levar no carro ou em viagens. 

Decisão é histórica, mas ainda há conservadorismo

Como as hortaliças que crescem na horta, a maconha que brota nas três estufas precisa de condições ideais para florescer. Cada uma delas é montada com luzes e um ventilador. O custo de energia mensal chega a R$ 800. Do plantio à feitura do óleo, na cozinha de casa, são, em média, dois meses. 

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Parte das plantações caseiras (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Em um dos dois quartos reservados à produção, há uma pilha com sete livros sobre o manejo do solo. ???Tem que estudar, se não, não dá certo???. Os dias de chuva são os mais temidos – podem mofar as plantas. 

????? histórica essa decisão, queremos até fazer um mapeamento dos HCs, mas é complicado, pois muitas vezes correm em segredo???, diz Natalia Ferreira, advogada de E. e representante da Rede Reforma na Bahia. Desde 2020, Ferreira atua em casos como o do engenheiro.

Há registros de HC para cultivo em Salvador, Vitória da Conquista, Ilhéus e Porto Seguro ??? provavelmente o primeiro, expedido em 2019. ????? importante dizer que nem todos têm acesso, conhecimento técnico e podem bancar. A maioria das pessoas que precisa não tem???, explica a advogada Maina Tavares.

Ela e o sócio Arthur Adler são os únicos, sediados em Salvador, especializados no atendimento de clientes que buscam o óleo de CBD ou um HC para cultivo. A própria Maina, diagnosticada com fibromialgia, ingere o óleo. Nas farmácias brasileiras, o preço de 30 ml é, em média, R$ 2,1 mil. 

Desde 2019, a Anvisa autoriza a importação e a compra de derivados de cannabis com prescrição. No ano passado, 35 mil pessoas solicitaram a importação.

???Para o HC, ainda há um conservadorismo do Judiciário em relação a uma substância que pode ser o remédio de muita gente???, avalia Maina.

O pedido do HC para cultivo corre na Vara criminal, já os pedidos de que o Estado ou o plano de saúde custeie o óleo de CBD são julgados na Vara Cível. O primeiro HC que se tenha registro no Brasil é de 2016 e contemplou uma carioca diagnosticada com síndrome neurológica.

 A Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) não informou quantos pacientes são contemplados com a distribuição gratuita do óleo de CBD. 

???O governo sempre vai dizer: ???o canabidiol não está nas normas técnicas do SUS’, que são os tratamentos previstos para certas doenças”, explica Arthur, o sócio de Maina.

Quando um juiz decide pela legalidade do cultivo da maconha, as autoridades policiais são avisadas. Na falta de uma lei específica, cada juiz estabelece limites para o plantio, como a quantidade de mudas.

Nas estufas montadas por E., podem ser plantadas até 60 sementes de cannabis, compradas em sites estrangeiros. Cada pacote com dez delas custa R$ 128.

No Brasil, a família Fischer, de Brasília, é pioneira na luta pela cannabis. A caçula, Anny, tem um distúrbio neurológico raro, que causava 80 convulsões por semana. Ela passou a ingerir óleo de CBD ilegalmente e o quadro clínico melhorou, o que levou a mãe e o pai dela a pedirem na Justiça o direito ao uso. A ação, vencida em 2013, pavimentou o caminho para outras disputas.

Maconha foi alívio para a dor 

Desde os 15 anos, E. sente dores que saem da coluna e irradiam no corpo. O médico dizia que eram ???dores do crescimento???, mas não parecia normal que virar adulto doesse assim. Pior ficou quando cresceu e a dor permaneceu. Na Europa, para onde ele se mudou para estudar, soube do potencial medicinal da cannabis, estudado desde os anos 80.

A maconha possui mais de 400 substâncias, mas as mais conhecidas, relacionados ao seu efeito medicinal, são o CBD e o tetrahidrocanabidional (THC). 

O primeiro tem ação analgésica, sedativa e anticonvulsiva. O segundo auxilia nos efeitos da ansiedade e depressão. As propriedades medicinais existem porque os componentes da planta interagem com um sistema existente no corpo, o endocanabinoide, que participa da regulação de processos fisiológicos. 

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“Esse é meu remédio”, diz E. (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Só porque estava na Alemanha, na década passada, E. teve acesso ao óleo de CBD, a plantações legalizadas e cursos de plantio e extração. De volta ao país natal, teve de plantar com fins medicinais sem ninguém saber. As dores aliviavam, mas E. não sabia as dosagens ideais. Em 2017, a agonia física piorou. ???Fui em uns oito médicos???.

A Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) existia há dois anos e oferecia uma lista de médicos prescritores por estado. Hoje, aparecem 16 especialistas sediados na Bahia. Na lista da Abrace, E. viu um neurologista. Foi ele quem, entre tantos, sugeriu a cannabis, em 2019. 

O engenheiro, depois de anos de medicamentos e duas microcirurgias, iniciou o périplo pelos relatórios para pedir nos tribunais o direito de plantar a maconha. O principal deles é um relatório médico que ateste a ineficácia dos métodos anteriores, em contrapartida da eficácia da cannabis.

Em setembro de 2021, E. iniciou a briga judicial. Em maio daquele ano, Salvador ganhou a primeira clínica focada no tratamento à base de cannabis. Era uma das provas que a luta de E. começava em um terreno mais fértil para a cannabis.

‘Não é perfil da maioria dos médicos [prescrever]’, diz médica

Nos consultórios médicos, o perfil de quem busca a cannabis medicinal inclui tanto o paciente que vê como tabu a ideia da maconha como tratamento quanto quem tenta conseguir os relatórios que precisa. 

???Acredito que há uma busca por mim porque me coloco em certos espaços de militância, mas não acredito que seja um perfil da maioria???, opina Ursula Martins Catarino, médica sanitarista prescritora de cannabis. 

Da primeira vez que Ursula se interessou pelos efeitos na saúde, em 2019, o diploma da graduação em Medicina já amarelava dos 20 anos de existência. ???As coisas estavam avançadas, a quantidade de material científico era grande???, conta. Os cursos de especialização se concentram em São Paulo.

Em 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu uma resolução sobre o ???uso compassivo de CBD??? para portadores de epilepsias. Oito anos depois, não emitiu novo posicionamento. 

???A questão da autonomia do médico, tão discutida na pandemia para a prescrição de cloroquina, não é tão forte quando se fala em cannabis???, indica Ursula. 

Entre os médicos, a posição ainda não é definida. Quando Vanessa Silva, 26, falou à neurologista do filho, Gabriel, sobre tratar as crises do garoto com CBD, ouviu: ???De jeito nenhum???. A criança está no Espectro Autista moderado e não falava. Vanessa assistiu a um vídeo em que um médico mostrava pesquisas que sugeriam a melhora da qualidade de vida de pessoas como o filho dela.

Para ter acesso ao óleo, buscou uma médica prescritora. Mas faltava o dinheiro para o produto. Desde junho do ano passado, o menino toma 20 gotas de canabidional por dia porque uma empresa norte-americana doa o produto. A família, de Amargosa, cobra judicialmente que o Estado pague o tratamento. 

Vanessa fará um curso online de plantio de cannabis e extração do óleo, ministrado por uma associação, para não depender das doações. Serão dois meses de aula, por R$ 350. ???Sabemos que não tem cura, mas o óleo trouxe qualidade de vida???.

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Folhas de maconha transformadas em óleo e pomadas (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Depois de uma semana de uso, Gabriel falou ???não??? pela primeira vez. Até então, ele se expressa por meio de autolesões.

A substituição dos alopáticos também logo se provou benéfica para E. O engenheiro recorda, em 2020, de uma noite de crise remediada pelo óleo de CBD. ???Em 30 minutos, já estava melhorando???, recorda. 

Há dois dias, as dores de E. estão mais intensas. A carga de trabalho aumentou e a necessidade de ficar sentado impôs seu preço. Ninguém vê na cannabis um milagre. ????? quase impossível não doer. Mas estamos seguindo, como sempre???. 

Neste final de semana, ele deve preparar quase 500 ml de óleo de CBD para os próximos quatro meses. Nem para todo mundo o remédio será um comprimido – às vezes, ele brota verde do solo. 

*Nome modificado a pedido do entrevistado.

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