(FOLHAPRESS) – A China cometeu graves violações de direitos humanos contra os uigures, minoria muçulmana que ocupa a região de Xinjiang, no oeste do país, segundo relatório do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas. O texto foi divulgado nesta quarta-feira (31), a 11 minutos do fim do mandato de Michelle Bachelet à frente do órgão.
A ex-presidente chilena vinha sofrendo forte pressão de ONGs nos últimos meses por sua postura considerada amena em relação a Pequim. O documento teve origem em uma visita que a representante da ONU fez, no fim de maio, a Xinjiang. A viagem foi considerada tão histórica, pela falta de precedentes, quanto frustrante, por declarações dela exortando o diálogo com a ditadura.
A China é acusada de reprimir e aprisionar o povo uigur. O novo relatório dá credibilidade às alegações de “padrões condizentes com a prática de tortura” na região, pedindo urgente atenção da comunidade internacional e alertando para o risco de que, em operações “de contraterrorismo e combate ao extremismo” pelo regime, crimes contra a humanidade tenham sido cometidos.
? incerto, porém, o impacto que ele terá para amenizar as críticas recentes à chilena. “Seu principal legado é e continuará a ser o fracasso em tomar medidas claras e necessárias sobre a crise dos direitos humanos na China, particularmente na forma como atrasou a publicação do relatório sobre Xinjiang”, diz à Folha de S.Paulo Raphael Viana David, diretor do programa para a Ásia do Serviço Internacional de Direitos Humanos (ISHR), baseado em Genebra. “Isso terá um impacto duradouro na confiança na capacidade do sistema da ONU de enfrentar infratores poderosos.”
No relatório de 46 páginas divulgado nesta quarta, uigures relatam terem sofrido violências sexuais em campos de detenção. Além de casos de estupro, mulheres contaram terem sido forçadas por guardas a realizar sexo oral no contexto de interrogatórios e de serem obrigadas a tirar a roupa em outras ocasiões. Ainda citam terem sido submetidas a exames ginecológicos invasivos.
Nenhum dos 26 entrevistados afirmou à ONU que conseguiu sair das instalações ou ir para casa para uma visita -eles afirmam que havia presença ostensiva de guardas armados com revólveres ou bastões.
Cerca de metade dos entrevistados relatou que lhes eram permitidas visitas ocasionais ou telefonemas para um parente, embora apenas sob vigilância. A outra metade não tinha contato com a família. Dois terços reportaram terem sido submetidos a tortura.
O tempo de permanência nos campos daqueles ouvidos pelo órgão variou entre dois e 18 meses, e eles afirmaram não terem sido informados da duração de suas estadias ao serem levados. Segundo o jornal The Guardian, a divulgação foi atrasada porque um documento chinês enviado à ONU forçou a proteção de nomes e fotos de alguns entrevistados, por razões de segurança.
O documento “é um desafio sem precedentes às mentiras de Pequim e ao tratamento horrível dos uigures”, afirmou Sophie Richardson, diretora da Human Rights Watch na China. “As conclusões explicam por que o regime chinês lutou com unhas e dentes para impedir a publicação.”
Omer Kanat, diretor de uma organização voltada à proteção da minoria, celebrou o fato de as Nações Unidas “reconhecerem, de forma oficial, que crimes horríveis estão acontecendo” em Xinjiang.
Pequim nega ter cometido abusos contra os uigures. Mais cedo, o embaixador na ONU, Zhang Jun, disse a jornalistas que o país havia deixado claro a Bachelet que se opunha ao documento, ao qual a China teve acesso antes da divulgação, alertando para o risco de ele minar as relações com as Nações Unidas. “Todos sabemos que a chamada questão de Xinjiang é uma mentira completamente fabricada com motivos políticos e visa a minar a estabilidade da China e obstruir o seu desenvolvimento”, disse.
Segundo ele, a alta comissária deveria “evitar interferir nos assuntos internos da China e não se resignar à política de poder de países ocidentais”.
Ao fim, além de agradecer ao regime por cooperar com informações, o texto faz recomendações a Pequim, que incluem libertar todos os indivíduos arbitrariamente privados de liberdade, esclarecer o paradeiro de desaparecidos e investigar as alegações de violações em campos de detenção.
Bachelet, a oitava chefe do Alto Comissariado de Direitos Humanos, anunciou de surpresa em junho que não tentaria um segundo mandato por razões pessoais -aos 70 anos, disse querer voltar para sua família no Chile e acompanhar o importante momento histórico que o país vive, às vésperas de um plebiscito sobre a nova Constituição.
Pelas regras da ONU, seu tempo no posto poderia ser renovado por mais quatro anos. Com sua desistência, o secretário-geral António Guterres deve apontar um novo nome, que precisará da aprovação da Assembleia-Geral. Os cerca de dez candidatos potenciais incluem o oficial das Nações Unidas Volker Türk, da Áustria, o diplomata de carreira Federico Villegas, da Argentina, e Adama Dieng, de Senegal, que já assessorou Guterres no programa de prevenção de genocídios.
Analistas veem a possibilidade de China e Rússia, membros permanentes do Conselho de Segurança, favorecerem um sucessor com mentalidade política. “O Ocidente e ONGs pressionam por um defensor dos direitos humanos, mas um ‘policial global’ seria inaceitável para Pequim, Moscou e muitos países em desenvolvimento”, disse à agência Reuters Marc Limon, diretor-executivo do Universal Rights Group.
Em uma de suas últimas falas como comissária, Bachelet afirmou a um repórter da rede alemã Deutsche Welle considerar injustas as críticas por sua postura em relação à China. Segundo ela, seu gabinete vem alertando sobre a situação dos direitos humanos em outras partes do país, como a respeito das ameaças à democracia em Hong Kong.
Disse também que seria lamentável ser lembrada apenas pela questão dos uigures, considerando que ela e seus colegas lidaram com centenas de países nos últimos anos. “Buscar diálogo com Pequim não significou fazer vista grossa”, disse nesta quarta, após a publicação do relatório.
Ex-presidente do Chile, Bachelet foi nomeada alta comissária em 2018, amplamente elogiada por seu histórico pessoal e profissional. Seu pai foi preso, torturado e morto pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile, e ela -então com 23 anos- e a mãe também foram detidas e torturadas.
Na política, foi a primeira mulher eleita presidente no país. Seu perfil no site da ONU destaca, para seus dois mandatos, a implantação de cotas para aumentar a participação política das mulheres e a aprovação da Lei da União Civil, garantindo direitos a casais de mesmo sexo.
Ela ascendeu ao cargo nas Nações Unidas quando o então presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou que cortaria o financiamento ao gabinete de direitos humanos do órgão. No ano seguinte, ouviu o brasileiro Jair Bolsonaro (PL) atacar seu pai, elogiar o golpe militar no Chile e dizer que ela defendia “direitos humanos de vagabundos”.
Na ocasião, Bachelet alertou para o aumento expressivo de mortes pela polícia brasileira e disse que o país passava por uma redução do espaço democrático. Na semana passada, em sua última entrevista coletiva no cargo, ela voltou a dizer que a situação dos direitos humanos no Brasil é muito difícil e demonstrou preocupação com os ataques do presidente ao sistema eleitoral.
Ainda sobre a América Latina, a chilena chamou a atenção para crises na Venezuela e na Nicarágua, lembra Raphael David, acrescentando que sua pressão pela equidade na vacinação contra a Covid foi uma resposta necessária aos impactos da pandemia.
Em outras frentes, Bachelet usou seu cargo para se opor ao golpe militar em Mianmar, manifestando-se diversas vezes contra as prisões e as execuções do regime, e pedir ao presidente russo Vladimir Putin que encerra a Guerra da Ucrânia e desmilitarize a usina nuclear de Zaporíjia. Os seis meses do conflito no Leste Europeu foram “inimaginavelmente aterrorizantes” para os ucranianos, disse ela.
Outro de seus legados é o debate para a abolição da pena de morte em países como Chade, Cazaquistão, Serra Leoa, Papua Nova Guiné e Malásia, conforme ela própria lembrou. “A jornada para defender os direitos humanos nunca termina -e a vigilância contra retrocessos de direitos é vital”, concluiu.
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