O racismo estrutural é justamente aquela face do atravessamento racial que perpassa todas as vidas em convívio social, conferindo privilégios ou preconceitos, em maior ou menor grau. Há ainda, no entanto, uma ilusão de que ascender economicamente ou ter uma carreira de sucesso tira de um homem ou uma mulher negra a exposição a tais dinâmicas. Em entrevista, a cantora Iza, que é símbolo de sucesso, sensualidade e beleza, contou as suas experiências pessoais sobre a convivência com o racismo, realidade que passou a ter consciência desde os 9 anos, quando era a única estudante negra em um colégio particular em Natal, no Rio Grande do Norte.
“A sociedade, infelizmente, ainda tem em, muitas áreas, aquela síndrome do único negro. Infelizmente é como se a gente tivesse colocado à prova o tempo inteiro”, reflete. Na conversa, Iza comenta ainda a emoção que sentiu em sua primeira viagem ao continente africano e a sensação de “volta para casa” pela qual foi invadida.
A cantora volta a Salvador neste domingo (20) para um show especial na Concha Acústica do TCA. Além de dividir o placo com diversos artistas nordestinos, acontecerá também o lançamento oficial do edital ‘Entra na Roda’, uma iniciativa da artista em parceria com o Instituto Identidades do Brasil (IDBR). A proposta idealizada pela cantora irá selecionar e impulsionar projetos de empreendedores negros nos segmentos de alimentação, entretenimento, beleza, moda e negócios de impacto social.
Você fará um show aqui em Salvador, capital mais negra do Brasil e uma das cidades com maior contingente de população negra fora do continente africano, e, justamente, no 20 de novembro. O encontro desses elementos trará algo ainda mais especial para essa apresentação?
Eu me sinto muito agraciada com essa junção toda. É um dia em que eu celebro a caminhada de quem veio antes de mim. É muito importante estar nesse lugar [Salvador] onde tudo isso faz ainda mais sentido. É onde eu vejo a minha música chegando de uma forma diferente. Onde eu vejo que o show é sempre muito diferente. É muito maravilhoso poder passar esse dia, que, de certa forma, é o dia que as pessoas falam muito sobre aquilo que a gente fala durante todo o ano. Então, é muito importante celebrar dessa forma a nossa existência.
Você é uma mulher negra bem sucedida, símbolo de beleza, mas a gente sabe que o racismo estrutural toca todas as realidades em convivência no espaço social. Como esse racismo enraizado no Brasil atravessa atualmente a sua vida pessoal e sua carreira?
Eu sinto muito que a sociedade, infelizmente, ainda tem em muitas áreas aquela síndrome do único negro. Infelizmente é como se a gente tivesse colocado à prova o tempo inteiro. É como se só pudesse existir um de nós em cada área. E nunca foi assim para nenhum de nós. A gente nunca quis isso. Mas é muito cansativo. Todos os dias a gente ter que lidar com uma competição que nem sequer é nossa, que a gente não faz parte, que a gente não se inscreveu. Isso é muito triste porque já existe esse filtro, esse funil injusto de oportunidade para nós, e quando você chega no lugar de satisfação, de felicidade com seu trabalho, é como se nada tivesse sido resolvido. Eu não estou falando só da música. Eu sinto que é assim em todas as áreas. É muito triste porque nós somos múltiplas, muitas, diversas. A gente tem tanta coisa para mostrar. Como todas as pessoas, cada uma tem a sua própria existência, com sua visão. Essa questão de você ter uma vida diferente, ser reconhecido em muitos lugares faz com que deixe de passar por situações que faziam parte da minha realidade todos os dias.
Na infância você morou por um período aqui no Nordeste, no Rio Grande do Norte, e era a única criança negra na escola particular onde estudava. Pode recordar, se for confortável, um pouco daquele período, a partir desse aspecto racial? Quais ferramentas aquela criança utilizava para conviver com a realidade?
Eu entrei nessa escola quando eu tinha 8 anos. Naquele primeiro ano não passava na minha cabeça essa questão de racismo, não sentia muito bem. Eu não sabia o que era isso, na verdade. Antes, quando eu entrava nos lugares com meus pais, e nós éramos os únicos negros, todo mundo olhava para mim e eu perguntava para minha mãe ‘por que estão olhando para mim?’. Minha mãe respondia ‘é porque você é muito bonita’. Eu já ficava me achando bonita. Então, dos meus 6 aos 8 anos, eu achava que os olhares que eu recebia eram por causa disso. Às vezes era, mas outras também não. Era o racismo fazendo os olharem virem até nós. A partir dos 9 anos é que eu comecei a entender que algumas coisas que aconteciam na escola era pela cor da minha pele. E aí foi muito ruim! Eu entendi que era uma coisa ali, com 9 anos, que iria me acompanhar para sempre. Que era uma coisa que eu nunca mudaria. Ter que lidar com isso com 9 anos é muito ruim. Eu sempre fui muito comunicativa, fui representante de turma. Então, era normal eu entrar em uma sala para pegar o apagador a pedido do professor e todos os alunos da primeira fileira fingirem que levavam um susto porque eu entrei. Isso fazia parte da minha vida. E quando você é criança acaba entrando nesse jogo. Algo que eu sempre falo é que, quando as crianças não aprendem o básico em casa, o ambiente escolar pode ser muito hostil. Mas eu não lembro só dessas coisas. Lembro que eu me apaixonei por esporte nessa escola. Eu lembro que tenho amigas maravilhosas da 2ª e da 3ª série que são amigas até hoje.
A estrutura racial em que você estava imersa era assunto de diálogo na sua casa na infância e adolescência?
Meus pais sempre deixaram claro que isso era uma coisa errada. Uma coisa que eu não tinha culpa por me sentir mal. Que eu não tinha culpa por não saber responder e precisava sempre falar para eles tudo o que acontecia. E minha mãe, se precisasse ir cinco vezes na escola, na semana, ela iria. Se acontecesse cinco vezes ela iria. Não sei como arrumava tempo, porque trabalha muito, mas estava lá.
Em julho deste ano, você teve a oportunidade de levar sua música e sua voz ao continente africano. Foi a sua primeira viagem ao continente? Como foi a experiência de pisar naquele solo sendo uma artista reconhecida, mas principalmente uma mulher negra?
Fui fazer um show em Luanda, Angola. Foi a primeira vez, sim, no continente africano. Foi uma coisa muito louca. Eu acordei e o avião estava pousando. Quando eu abri a janela vi o pôr-do-sol mais vermelho que já vi na minha vida. E eu comecei a chorar como uma criança. E nem sabia porque estava chorando. É um lugar completamente diferente, que eu nunca tinha visitado. A sensação que eu tinha era de voltar para casa. Foi também muito louco ver como meu trabalho chega nesses lugares. É impressionante como todo mundo conhece meu trabalho lá. Eu não sabia o que esperar. Quando eu cheguei lá eu encontrei um público muito caloroso, que realmente sabia as minhas músicas. Foi muito especial essa viagem. Toda a minha equipe chorou. Foi muito especial para todo mundo.
Você comentou dessa sensação de voltar para casa. Uma parcela de pessoas negras no Brasil tem buscado testes de DNA para descobrir de forma assertiva seus ancestrais em África, para reconectar. Você tem curiosidade de ir mais fundo nessa busca por suas origens em África?
Eu estou combinando com minha família, a gente vai se organizar para poder fazer esse teste. É algo que eu tenho muita vontade. É muito triste o apagamento da nossa história. É tão importante a gente saber de onde veio para saber para aonde a gente vai. Eu estou muito curiosa para saber. Isso já é um desejo antigo. Acho que agora nesse próximo ano, 2023.
Por conta do seu trabalho você é conhecida e reconhecida no Brasil e fora dele. Quais as diferenças de ser uma mulher negra aqui e nessas outras partes do mundo, como nos EUA ou países europeus, por exemplo?
É uma coisa que a gente liga desde sempre e nunca vai aprender a lidar com isso. A gente sempre vai ter reações adversas. Vai ter dia que você vai se calar. Vai ter dia que vai ter reações adversas. Dia que vai querer confrontar. É uma coisa que é tão cruel e tão presente que as reações podem ser várias. Acho que ser negra no Brasil, por conta do meu trabalho, tem essa situação de eu estar protegida de certas formas e entre muitas aspas. Mas lá fora só mais uma. Estou suscetível a passar por qualquer tipo de coisa, assim como qualquer outra.
Tem alguma situação especial que você recorde agora?
Talvez ser seguida em loja. Já tem bastante tempo. Mas por mais que seja algo que eu não me recorde, acontece.
No Brasil, a gente ainda discute a falta de inclusão e mesmo de representatividade negra nos espaços de poder, espaços que denotam sucesso e afins. Você, dentro desse universo, é uma desses pontos de referência. Isso para você é um peso ou um alento? Como é lidar com essa responsabilidade?
A partir do momento que você tem uma visibilidade, tem que tomar cuidado com o que fala. Tem que se responsabilizar com o que você fala. Independente da representatividade, eu me sinto responsável pelas coisas que eu faço e falo. Mas a representatividade, falando sobre o reconhecimento, de forma nenhuma isso é um peso. É um alento para mim. Um carinho. Isso que me faz seguir em frente. Saber que eu não estou sozinha. Saber que no meu dia mais difícil tem alguém que está se inspirando em mim. E isso faz toda a diferença.
Salvador recebe Afro Fashion Day neste sábado (19)
Um dia antes do show de Iza, Salvador recebe a edição 2022 do Afro Fashion Day. No dia 19 de novembro, no Centro Histórico de Salvador, acontece pelo oitavo ano o Afro Fashion Day, que após duas edições virtuais – um fashion filme e um desfile gravado – retorna ao formato presencial. Aberto ao público, que terá acesso livre à sua programação, o projeto de moda, do jornal Correio (BA), que celebra o mês da Consciência Negra destacará mais uma vez a produção de estilistas, marcas e designers de acessórios baianos e o talento de modelos pretos em um megadesfile coletivo que, nesta edição, terá a capoeira como tema.
Marcado para acontecer a partir das 18h, no Terreiro de Jesus o desfile contará com um elenco de cerca de 100 pessoas, entre modelos, capoeiristas e outros convidados, destacando o tema em um show de moda e arte. Os 75 looks que serão apresentados foram criados por 43 marcas e estilistas baianos, uma franco-camaronesa e um coletivo de acessórios.
O Afro Fashion Day é um projeto do jornal Correio com patrocínio de TikTok, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e Sebrae, apoio do Shopping Barra, Suzano, Vult e Salvador Bahia Airport e parceria da Melissa.
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