Qatar usa Copa para tentar limpar imagem após violações de direitos humanos

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QATAR (FOLHAPRESS) – Nas ruas de Doha, capital do Qatar, as mulheres são vistas com maus olhos se não cumprirem os códigos de vestimenta, que indicam evitar ombros à mostra e roupas acima do joelho. A comunidade gay internacional não está presente de forma expressiva.

A cidade é um canteiro de obras, algo que chama atenção especialmente por este ser um país alvo de denúncias de que morreram milhares de trabalhadores imigrantes que se dedicavam à preparação da Copa, segundo a organização Human Rights Watch. De acordo com a instituição, eles ganhavam salários baixos e tinham jornadas exaustivas.

A Copa do Mundo de 2022 é um passo a mais do Qatar em direção ao uso do esporte, do dinheiro e da influência política para construir sua imagem de poder perante o mundo.

Anos antes, magnatas qatarianos criaram a Qatar Sports Investments, um fundo de investimento financiado pelo Estado que viria a ser, mais de uma década depois, considerado dono de um dos mais caros times de futebol do mundo, o Paris Saint-Germain.

Para Reginaldo Nasser, professor de relações internacionais na PUC-SP e especialista em Oriente Médio, a Copa do Mundo de 2022 é uma forma de o regime amenizar as críticas que recebe pelas violações de direitos e proibições comportamentais que estabelece.

O professor afirma que se colocar no mundo por meio do esporte e outros tipos de financiamento é uma estratégia antiga do governo local, que também apoia instituições educacionais e culturais no Ocidente como forma de ganhar influência sobre os países.

“Tem um estilo dessa elite árabe [qatari] de bancar universidades, questões culturais. E o esporte, de uns tempos para cá, veio junto.”

Arlene Clemesha, professora de história árabe da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP, diz que a Copa é uma tentativa de fortalecer essa política de inserção do Qatar no mundo, pois, devido à sua produção de petróleo e gás, a nação precisa se equilibrar entre potências.

Usar o esporte para reconstruir uma reputação é chamado de “sportswashing”, uma estratégia antiga usada por governos, principalmente autocratas, para mudar sua imagem diante da comunidade internacional.

Da escolha do país como sede, em 2010, até agora, porém, o país foi soterrado por denúncias.

Ativistas incentivaram o boicote ao campeonato e disseram que um regime como o qatariano, que não apoiava direitos humanos básicos para mulheres, trabalhadores imigrantes e a comunidade LGBTQIA+, não poderia ser palco de tamanho acontecimento.

Clemesha, que também atuou na direção do Centro de Estudos Árabes da universidade paulista, diz acreditar que o plano original do país era que a Copa fosse fortalecer sua imagem de poder perante o mundo, usando o esporte para vender a nação.

Questionada, porém, a professora diz que, diante das denúncias de violação de direitos humanos, restou ao país tentar usar a própria Copa para “limpar a sua barra”.

“Mas não sei se agora ele vai ser capaz de mudar alguma coisa em termos de imagem. Já ficou claro para o mundo que parâmetros de direitos de minorias que são estabelecidos em muitos países não existem no Qatar.”

A exposição que o Qatar sofreu durante a preparação para o Mundial teve efeito ao menos no quesito dos direitos laborais no país. Após pressão de organizações internacionais e danos à imagem do governo com a morte de trabalhadores, em 2017, o Qatar assumiu reformas trabalhistas.

O país assinou um acordo com a Organização Internacional do Trabalho se comprometendo a revisar suas leis laborais para imigrantes, colocando-as no padrão mundial, segundo a Anistia Internacional.

Porém um comunicado da entidade, de outubro deste ano, pedia às autoridades qatarianas para reassumirem o compromisso de finalizar as reformas prometidas.

Neste sábado (19), o presidente da Fifa, Gianni Infantino, afirmou que vê como hipocrisia as críticas ao Qatar devido às denúncias sobre a situação dos trabalhadores migrantes. Em um longo discurso, o suíço-italiano começou dizendo que os europeus deveriam pedir desculpas pelos próximos 3.000 anos por suas próprias histórias antes de “começar a dar lição de moral”.

Outros pontos criticados não tiveram avanços significativos, segundo as organizações internacionais. Um deles é o país trata a homossexualidade. No Qatar, ser gay é crime passível de pena de morte.

Desde o anúncio, parte da comunidade LGBTQIA+ pede boicote ao evento devido às violações de direitos que membros do grupo sofrem por forças de segurança locais.

Em setembro, o emir Tamim bin Hamad Al Thani disse que torcedores homossexuais de todo o mundo eram bem-vindos “sem discriminação” ao país, em uma tentativa de apaziguar temores de ativistas.

Um mês depois, a Human Rights Watch emitiu nota afirmando que forças de segurança qatarianas arbitrariamente prenderam gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros no mesmo período em que o emir garantiu ao mundo a segurança da comunidade.

Em novembro, o ex-jogador da seleção do Qatar e embaixador da Copa Khalid Salman chamou a homossexualidade de “dano mental”. Ele acrescentou ainda que ser gay é um “haram”, pecado proibido no islã.

Para o pesquisador Ryan Centner, professor na LSE (London School of Economics and Political Science) e especialista em desenvolvimento urbano transnacional e inclusão, tais manifestações são uma forma de transformar a cultura do país em uma arma do regime contra essa comunidade.

Centner aponta que essas falas pressupõem que não existe comunidade homossexual no local, o que ele diz ser uma mentira. A teoria vendida pelo governo, entretanto, reforça a ideia de que ser LGBTQIA+ é um erro no local.

“Quando o Qatar diz ‘vocês devem respeitar nossas tradições’, está implícito que viver ou se identificar de qualquer forma como gay ou outro rótulo semelhante é contra a cultura e a tradição qatariana”, afirma o especialista, que realizou uma pesquisa sobre como homens gays ocidentais se relacionam em Dubai e visitou o Qatar durante o período, embora não tenha formalmente pesquisado no país.

Outro ponto de tensão para o regime em relação a Copa é a situação das mulheres. A professora Arlene Clemesha pontua que o país é visto como mais liberal se comparado com outras nações islâmicas. Por isso, acredita que turistas não devem ter problemas graves caso não sigam rigorosamente os códigos de vestimentas indicados.

“O problema é mais embaixo se formos falar de direitos de mulheres, o problema é fora da Copa. Por exemplo, se uma pessoa em trânsito tem uma relação com alguém, não é casada e engravida, ela vai presa”, diz.

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