Dezembro está se tornando um mês cada vez menos perigoso para os perus. Por mais que o exótico animal, nativo da América do Norte, siga como um dos grandes símbolos da Ceia de Natal, nas mesas a presença dele vem sendo cada vez menos frequentes. Na competição com aves natalinas, como o Chester ou o Fiesta – nada mais que variedades de frango superdimensionadas – ou o Tender, um pernil de porco cozido e defumado, o gluglu vem perdendo espaço ano após ano.
Entre 2012 e 2021, a produção brasileira de carne da ave registrou uma queda de quase 65%, passando de 442 mil toneladas para 157 mil toneladas por ano. E o que poderia ser entendido como sinal de crise no bolso é na realidade uma mudança de hábitos. Assim como há cinco séculos a humanidade trocou as cabeças de javalis lentamente defumadas – sim, este já foi o prato principal do Natal – pelas aves do Novo Mundo, agora o centro das mesas está novamente ganhando novos ocupantes.
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O zootecnista baiano Ronaldo Vasconcelos, professor e pesquisador da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), dedica sua vida ao estudo do mais pesado membro da ordem dos Galliformes. Para ele é justamente a quantidade de massa corporal que está afastando cada vez mais os perus das mesas. Na realidade, justiça seja feita, as peruas. Os machos passam facilmente dos 8 quilos, chegando a 15 kg – normalmente carne demais para famílias que são cada vez menores. As fêmeas, mais leves, acabam sendo as preferidas para o abate.
“Um peru macho não caberia na maioria dos fornos que a gente tem em casa”, explica Vasconcelos. O destino dos machos costuma ser o processamento industrial, para a fabricação de peito defumado ou blanquet, por exemplo, ou ainda a comercialização de partes separadas, como o pescoço, a asa ou a coxa. “Eu sempre comento com as pessoas que quem gosta de rabada, mas está em busca de um alimento mais saudável, com menos gordura, deve experimentar o pescoço do peru”, diz o professor, que vive em Itapetinga.
Ainda que a fêmea seja mais leve, é uma grande ave, que alcança facilmente os 4 quilos. Além disso, a carne é menos macia. “O Chester e as outras aves natalinas, cada empresa lançou a sua, nada mais é que um frango tardio, abatido próximo aos 70 dias de idade”, diz. “O peru que nós consumimos comercialmente hoje vem de um pacote tecnológico, ele não sai das fazendas”, explica. O manejo é feito para aproximar a carne do desejo de consumo das pessoas, por um produto mais macio e suculento. Coisa que o peru raiz não é. “Antigamente tinha uma tradição, de que era preciso dar cachaça para o peru antes de matar. É algo que ainda está vivo na cultura do interior”, diz. O porre antes do abate tem uma explicação: “o sentido é amaciar a carne”.
Ronaldo Vasconcelos conta que no Natal de 2021 era possível encontrar seis tipos diferentes de aves nas gôndolas dos supermercados de Itapetinga competindo com o gluglu. “Com um nível de concorrência destes, muitas empresas optam por preços agressivos, mas o peru não tem uma margem tão grande de redução porque tem um tempo de vida até o abate longo e demanda muita tecnologia de produção”, compara.
A reprodução, por exemplo, precisa ser feita por inseminação artificial no modelo industrial. “Se você tem um macho, que chega aos 15 quilos, falta disponibilidade anatômica e sexual para a fertilização natural”, diz.
Consumo regional
Embora o consumo seja realmente concentrado no período de final de ano, as dietas com restrição de gordura e características culturais regionais colocam a carne de peru na mesa praticamente o ano inteiro na Bahia.
“Existe um consumo regionalizado que é muito forte. Nas grandes cidades, não, mas no interior você encontra a venda de perus nas feiras. Bastante nas pequenas cidades, mas até em municípios de médio porte, como Conquista e Itabuna”, conta. “É um alimento que está presente em pratos etnogeográficos, sempre na forma de um ensopado e em momentos de reunião aqui na Bahia e eu já vi muito no interior de Pernambuco também”.
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Criação de peru preto caipira em Itapetinga (Foto: Divulgação) |
Na realidade, o animal está tão presente na vida de muitos baianos que em algumas localidades no interior do estado é comum a doação de perus como um presente. E isso não acontece apenas no período do Natal.
Não apenas a Bahia, mas todo o Nordeste tem potencial para o desenvolvimento da produção de perus, acredita Ronaldo Vasconcelos. Para ele, a atividade pode ser muito benéfica para a agricultura familiar.
“É muito importante que as pequenas propriedades diversifiquem suas fontes de receitas. Eu nunca vi um peru ser levado para ser vendido numa feira e retornar para a fazenda”, diz.
Novo rei da mesa
Se a saga do peru como prato principal do Natal estiver mesmo se aproximando do fim, não será a primeira vez que uma mudança do tipo acontece. As aves assadas inteiras substituíram as cabeças de javali defumadas no Natal europeu. Há quem diga que o ciclo do peru se originou do Dia de Ação de Graças, onde a ave é consumida como um sinal de fartura, sempre na última quinta-feira de novembro. O alimento sempre fez parte da dieta dos indígenas na América do Norte. Daí até migrar para o Natal foi um pulo.
Pode ser que o feriado norte-americano, comemorado pela primeira vez em 1621, tenha ajudado a popularizar o consumo da ave, porém o mais antigo registro do consumo da carne de peru na Ceia de Natal acontece um século antes, na Inglaterra.
Em 1526, um jovem proprietário de terras de Yorkshire voltou para casa após uma longa viagem, de acordo com um registro histórico publicado pela BBC. William Strickland retorna do Novo Mundo com seis aves “estranhas”, compradas de nativos americanos. Elas tinham pedaços com “pele oscilantes que balançavam junto aos bicos como meias vermelhas e gostavam de desfilar com suas caudas expostas”.
Na versão inglesa, o escritor Charles Dickens e o seu gosto pela ave presente em Um Conto de Natal exerceu papel fundamental na popularização do consumo. O escritor descreve a história de um homem avarento que observa seus erros e providencia um enorme peru para o funcionário mal remunerado. O prato caiu no gosto dos ingleses e ganhou o mundo, assim como o futebol, que segue com lugar cativo nos corações brasileiros.
Consumo anual é de 0,5 quilo
Natal à parte, o brasileiro não tem o costume de consumir a carne do peru com frequência. É uma barreira cultural, reconhece o presidente da Associação Brasileira da Proteína Animal (ABPA), Ricardo Santin. Segundo ele, a produção nacional é relevante por conta do mercado externo e suficiente para garantir o produto na mesa dos brasileiros que não abrem mão da tradição. Entretanto a maior parcela da população quer mesmo os frangões. Das 157 mil toneladas de peru produzidas no ano passado, 47,377 mil foram destinadas ao mercado externo, resultando numa receita de US$ 110 milhões, segundo dados da ABPA. Segundo a entidade, o consumo per capita anual da carne no Brasil é de meio quilo por habitante.
“A produção é pequena, se comparada com a de frangos, porém é bastante relevante por causa das exportações, que estão em crescimento”, diz. No passado, lembra Santin, duas grandes empresas dominavam o mercado produtor da ave, mas restrições para a exportação em um grande mercado desestimularam os negócios por aqui.
Em meio a tudo isso, surgem as aves natalinas, que, estas sim, caíram no gosto do consumidor brasileiro.
“Tem tamanhos interessantes para o consumidor e preços mais acessíveis porque possuem custos de produção mais baixos. São os hábitos de consumo das pessoas que definem para onde vai o mercado”, aponta.
“O que a gente percebe por parte do consumidor é que a demanda pelos frangões natalinos é muito mais acentuada do que pelo peru”, concorda João Claudio Nunes, diretor comercial da Redemix e vice-presidente da Associação Baiana de Supermercados (Abase). Mas para ele há espaço para todos no mercado. “O peru é uma ave muito tradicional, ainda tem gente que só consome ele no Natal, porém, de modo geral, essa tradição foi transferida para outras aves”, explica.
O comerciante acredita que a geração atual não será responsável por aposentar a ave da ceia. “Nós ainda atendemos uma faixa de público que faz questão do peru e não é qualquer um, é aquele acima dos 8 quilos, às vezes 10 quilos”, diz.
Para Claudio, este ano, com uma tranquilidade maior em relação à covid do que em 2021, deve representar um melhor período de vendas não apenas para as aves natalinas, mas para toda a gama de produtos típicos do Natal.
“Normalmente a gente tem um pico de vendas nos últimos dias antes do Natal, até porque são produtos que ocupam uma área extensa nos refrigeradores das pessoas, mas desde o início de dezembro já estamos com uma procura muito elevada pelos produtos”, conta.
O economista Guilherme Dietze, consultor econômico da Fecomércio-Ba, diz que do ponto de vista econômico, as perspectivas para o consumo no Natal deste ano são positivas. “O setor de supermercados deve ser um dos principais focos do 13º salário e estamos com mais de 130 mil empregos com carteira assinada a mais, em relação ao ano passado. Isso vai se refletir num aumento significativo da renda para o período”, aponta.
Outro fator positivo levantado por Dietze é uma inflação menor sobre os produtos.
Alternativas ao peru
Por mais que as tradições natalinas sejam capazes de deixar a maior parte das pessoas com água na boca, elas estão longe de ser unanimidades, como tudo na vida. Quem nunca viu alguém que não gosta de passas? E além das questões relacionadas ao paladar, é preciso lidar também com a realidade das restrições financeiras ou alimentares.
Entretanto, com criatividade, sempre será possível fazer uma boa Ceia de Natal, que será a desculpa perfeita para momentos de congraçamento entre familiares e amigos. Abaixo, algumas alternativas ao tradicional peru.
Aves natalinas
Os frangões podem substituir o peru como uma alternativa para quem deseja consumir ave por um valor mais acessível. Praticamente todas as empresas do setor avícola possuem marcas de aves natalinas.
Bacalhau
As receitas à base de bacalhau no Brasil são quase tão tradicionais quanto o próprio peru. Na eventualidade de não poder contar com a ave no centro da mesa, o Bacalhau de Natal, ou a receita à Gomes de Sá, podem ficar bem no espaço. Para economizar, comprar uma quantidade menor e desfiar pode ser o caminho.
Pescados
Uma alternativa também ao bacalhau é investir em determinados peixes, como o cação, que bem temperado, passa tranquilamente como ingrediente principal de uma bacalhoada alternativa.
Pernil suíno
O corte suíno, facilmente encontrado defumado e temperado com molho de laranja, é uma alternativa para quem quer voltar à culinária mais tradicional do Natal. Por muito tempo, a carne de porco e a cabeça de javali defumada foram o prato principal da festa.
Opção vegana
Se a busca por uma alternativa se dá por conta do veganismo, vale a pena pesquisar receitas à base de jaca, que temperada corretamente poderá se passar por um lombo ou até um pernil.
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