De volta à alegria do mundo

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Morei boa parte da vida na Cidade Baixa, que se expandiu a partir de um dos maiores portos marítimos do Atlântico, no século XIX, espécie de marco zero de uma Salvador multicultural e, ao mesmo tempo, provinciana. A torre da bela igreja neogótica dos Mares, com seis anjos esculpidos, paira sobre a minha infância.

Irmã Dulce, atravessava a pé as ruas por onde andei, em busca de auxílio para seus doentes. E o cortejo da Lavagem do Bonfim passava todos os anos na porta da casa de número 53. Na noite anterior à festa, assistíamos ao movimento dos ambulantes, que enchiam de cores e vozes altas a vizinhança ao longo da madrugada.

A larga pista de mão dupla, entre os largos dos Mares e de Roma, ficava estreita, com caixas de cerveja e bancas de madeira atravancando os passeios, e os amigos de infância surgiam, em aparições espontâneas, qual simpáticos fantasmas. Meus pais pareciam felizes desde cedo, já na véspera, devotos, de volta à alegria do mundo.

Bandinhas de sopro faziam a trilha sonora da Alvorada, misturando-se a agogôs e atabaques. E todos vestiam roupas brancas, improvisando um Réveillon fora de época. Carroças ruidosamente enfeitadas, caminhões de ricos e famosos, trios elétricos com altos falantes à mostra, mal conseguiam dar a volta na Colina Sagrada.

Logo que clareava, uma multidão de corpos suados avançava desde a Conceição da Praia, procissão de baianas, equilibrando vasos em seus torços. E uma ala de destemperados que, distribuindo socos e sustos, camisas amarradas na cintura, parecia lutar contra adversários imaginários, em movimentos de ataque e esquiva.

Qual comunidade cigana, transitando pela cidade à medida em que evoluía o ciclo das festas populares, ao pé da colina, armavam-se barracas coloridas de madeira, cujos nomes decorávamos e esquecíamos em seguida. E aquela bagunça alegre, abençoada pelo portentoso hino, organizava o novo ano baiano em versos eneassílabos.

Farol e guarda, sentinela avançada da Bahia. Guardo comigo os verões sucessivos, as alegrias e luxos de viver numa cidade luminosa e cheia de contrastes. Não estive na retomada da Lavagem, após a pandemia. Talvez porque meus pais já não estejam mais nesse mundo, admito. E essa era a festa que eles mais amavam.

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