Quantas histórias cabem em 470 anos? E quanto uma paisagem pode mudar em tanto tempo? A cidade de São Paulo, que faz aniversário nesta quinta-feira (25/1), tem personagens que vêm escrevendo, ao longo dos séculos, a crônica de uma metrópole em constante transformação.
É verdade que o passado, muitas vezes, deixa saudades. Em 1951, Adoniran Barbosa já cantava, em “Saudosa Maloca”, as memórias de um palacete abandonado que deu lugar a um edifício alto — um prenúncio da verticalização que se tornaria, cada vez mais, um símbolo da capital paulista.
Já em “Triste Margarida” (1975), o mesmo Adoniran celebrava a chegada do metrô a São Paulo, o modal que mais mudou a cara da cidade nas últimas décadas, dando novos contornos a bairros inteiros.
Neste aniversário da cidade, o Metrópoles decidiu contar a história dessas mudanças sob o ponto de vista de quem vive e trabalha em São Paulo, sempre com um ponto em comum: todos foram localizados em imóveis situados no número 470 de ruas e avenidas de diferentes regiões da cidade.
Na peregrinação pela capital, encontramos muitas versões de São Paulo: diante desta repórter, houve quem se protegesse na “gaiola” de segurança de um prédio no bairro nobre, mas também teve, na periferia, quem abrisse um sorriso e oferecesse um banho de mangueira no quintal para se refrescar em meio ao calor de janeiro.
Cada um à sua maneira assiste, assim, à transformação diária de sua São Paulo, sem deixar de lado as lembranças do passado. Há quem sinta falta das árvores, das casas térreas ou da liberdade de brincar nas ruas sem medo da violência. Ainda assim, a capital paulista de hoje em dia parece ser o lugar onde quase todos querem estar.
Nesta reportagem especial, o Metrópoles convida você a conhecer a história dessa transformação por meio de personagens que habitam o 470. Vem com a gente!
Avanhandava O casarão que parou no tempo
Álvaro Rodrigues As jabuticabas não me fascinam mais
Tietê No início era tudo mato
Clodomiro Amazonas A cidade sobre duas rodas
São Paulo Do centro ninguém me tira
A rua que virou ponto turístico com as intervenções urbanas da Famiglia Mancini guarda um número 470 na direção oposta à dos restaurantes italianos. O casarão amarelo, com árvores de galhos longos que chegam a encostar nos fios de energia da rua, pertence à família de Elisabeth Regina Ornelas Silva, de 60 anos.Ela conta que foi o próprio avô quem construiu a casa, em 1950, depois de comprar o terreno loteado pela companhia inglesa Cia City, na esteira das obras na região central da cidade. “Ele começou do zero. Conseguiu juntar o dinheiro e ir pagando em prestações.” Naquela época, o centro passava por uma série de transformações e a Avenida Nove de Julho, a poucos metros da casa, era um dos maiores retratos dessa mudança. Imagem mostra desenho do que seria a Avenida Nove de Julho, em projeto elaborado pela companhia inglesa Cia City A via foi construída onde antes corria o Rio Saracura, eternizado no hino da Vai-Vai, e que hoje está canalizado. A Rua Avanhandava surgiu pouco tempo depois, projetada pela mesma empresa responsável pela obra na Nove de Julho.
Dali para a frente, todas as mudanças da Bela Vista foram acompanhadas de perto pelos moradores da casa 470.
Em 1970, eles viram surgir o Viaduto Doutor Plínio de Queiroz. Em 1980, assistiram aos primeiros passos da família Mancini no bairro. E, nas décadas seguintes, acompanharam a crescente verticalização da região.
“Essa é a grande mudança da cidade: prédio, prédio, prédio”, fala Reinaldo Victor, 59, namorado de Elisabeth, que mora com ela e o cunhado no 470 da Avanhandava.
Ao lado da casa deles, onde antes ficavam sobrados, foi erguido um prédio com 16 andares.
Agora, a família se prepara para deixar o casarão que testemunhou as últimas mudanças da Bela Vista e encerrar sua história com o número 470. Para eles, ficou caro demais se manter na casa amarela.
“Ficou surreal morar hoje numa casa dessa. O IPTU e as taxas da Prefeitura acompanharam o desenrolar da economia, mas a qualidade de vida das pessoas, infelizmente, não condiz com isso”, diz Reinaldo.
Elisabeth conta que eles não conseguem pagar pelo IPTU do imóvel, que custa quase R$ 19 mil. Há pelo menos 10 anos, a família tenta vender a casa, enquanto acumula uma dívida de mais de R$ 250 mil com a Prefeitura.
“A gente não ganha [o suficiente] para pagar o imposto, esse é o problema”, resume Elisabeth, que trabalha vendendo títulos de capitalização.
As paredes com pintura descascando, o mofo no banheiro e as decorações antigas, deixadas pela avó de Elisabeth na sala, fazem parecer que a casa parou no tempo, em meio às mudanças de São Paulo.
Enquanto tentam vender o imóvel, Elisabeth e o namorado seguem divididos sobre permanecer morando na capital paulista. Ela quer se mudar para o interior, para uma vida mais tranquila. Já Reinaldo, que assim como a companheira mora na Bela Vista desde criança, diz que não aceita deixar o bairro, nem a cidade.
“Ele ama São Paulo”, diz Elisabeth sobre o namorado.
No Brooklin, zona sul da capital paulista, as ruas largas abrigam vários imóveis com o número 470. A idade de São Paulo aparece em condomínios novos, casas térreas e também em uma pequena porta de madeira na Rua Álvaro Rodrigues, onde trabalha a faxineira e cuidadora Vera Lucia, de 56 anos. Mineira, ela mora hoje em São Roque, interior de São Paulo, num terreno com 400m² que tem pés de jabuticaba, manga e acerola. Mas seu sonho mesmo é morar na capital paulista, cidade onde desembarcou em 1995, com seus 4 filhos, após ficar viúva. Naquela época, diz, as pessoas deixavam “plaquinhas” com vagas de emprego nas portas das casas. Foi assim que ela conseguiu seu primeiro trabalho como empregada doméstica. “Eles colocavam cartaz na porta: ‘Precisa de doméstica para dormir’. Toquei [a campainha], entrei e fiquei”, diz a faxineira. Vera diz que os cartazes foram desaparecendo com o passar do tempo e a sensação cada vez maior de insegurança na cidade. “Antes a gente podia sentar no portão, ficar conversando. Você não ouvia falar tanto em assalto. Hoje você está no ponto de ônibus e eles te roubam”. Há pouco tempo, a filha dela foi vítima de um assalto quando voltava do trabalho em Indianópolis, bairro nobre na zona sul.O ladrão queria dinheiro, mas como a jovem tinha apenas um cartão de crédito, ele ordenou que ela entrasse em uma farmácia e comprasse leite em pó e fraldas “das melhores marcas”, segundo Vera. Depois de receber as compras, o homem fugiu.A empregada diz que torce para que a cidade tenha mais oportunidades e menos violência no futuro. “Eu queria que tivesse emprego para todo mundo para ver se as pessoas param de roubar”, afirma.
No Brooklin, onde ela trabalha, a moradora de um prédio de alto padrão negou entrevista ao Metrópoles ao ser abordada em frente ao condomínio.
Enquanto falava com a reportagem, a mulher colocou o filho na “gaiola” de segurança formada pelos dois portões do prédio. Depois, também entrou às pressas, com expressão de medo.
Vera diz que edifícios de alto padrão como aquele são novidade no bairro, antes formado apenas por casas térreas e pequenos sobrados. “Todo canto que você olha está subindo prédio.”
A mudança é fruto do incentivo do Plano Diretor à verticalização na região, próxima às recentes estações da Linha 5-Lilás.
Vera diz que se não fosse “o alto custo”, ela viveria até hoje em São Paulo, onde morou de aluguel por anos.
“Eu ainda falo assim: ‘Meu Deus, se for da sua vontade, eu ainda vou comprar uma casa em São Paulo’. Eu amo São Paulo.”
Na zona leste da cidade, o número 470 da Rua Tietê, na Vila Seabra, marca o endereço dos 13 membros da família Pontes, que se espalham nas quatro casas construídas no terreno. É ali que Igor Gomes Perini Pontes, 43 anos, mora com as duas filhas. Quando o Metrópoles chegou ao portão da casa, as meninas brincavam em frente ao imenso quintal do terreno, que tem árvores frutíferas, um balanço feito com pneu e uma cama elástica. “Elas têm bastante contato com a terra, tomam banho de chuva, brincam na lama. Eu faço questão que elas tenham isso”, diz o pai. No dia em que o Metrópoles visitou a casa na Rua Tietê, as crianças da família Pontes brincaram de banho de mangueira para se refrescar em meio ao calor Ele conta que costumava brincar nas áreas verdes do bairro quando era criança. Hoje a paisagem da região se transformou e o verde da mata deu lugar ao cinza das construções.As mudanças foram acompanhadas de perto pela família Pontes. Mãe de Igor, Miriam Perini Gomes Pontes, 67, conta que em 1970 a região ainda era predominantemente rural. “Quando eu vim para cá era só fazenda, chácara… Só tinha casa bem distante uma da outra, com mato e trilha no meio”, diz. Naquela época, a Vila Seabra não tinha esgoto encanado e, à noite, os moradores viviam num completo breu. “Quando colocaram luz na rua, eu fiquei o dia inteirinho servindo café para os homens [que trabalhavam na instalação], tamanha era a minha alegria!”.Com o passar dos anos, a região foi ficando mais povoada, recebeu comércios e serviços públicos.Os espaços verdes, no entanto, foram sumindo ao passo que as novas casas se aproximavam cada vez mais do Rio Tietê, até beirar o curso d’água, na última década. (Veja o avanço da urbanização na região abaixo)
O lugar onde antes Igor brincava de bola com os amigos deu lugar ao Jardim Pantanal, bairro que sofre com inundações todos os anos nos períodos de mais chuva.
“Quando eu era mais novo a gente ia ajudar a resgatar as coisas na enchente. Pegávamos teto de Kombi para fazer de barco”, lembra ele.
Os alagamentos não alcançam a casa de sua família, mas em dias de chuva forte Igor conta que não consegue ir ao trabalho por causa das enchentes.
Agora, ele diz que sonha que, no futuro, São Paulo possa oferecer moradia a quem mais precisa e, ao mesmo tempo, possa garantir a preservação de suas áreas verdes.
“Preservar e revitalizar algumas coisas que já foram destruídas. Dá para plantar, fazer crescer de novo.”
A fila de motos estacionadas em frente ao número 470 da Rua Clodomiro Amazonas, na divisa da Vila Nova Conceição com o Itaim Bibi, zona oeste da cidade, é o primeiro sinal de que aquele é um endereço onde os motoboys têm presença constante. O local é a sede de um supermercado on-line, de onde são despachados os pedidos feitos pelos usuários de um aplicativo. Ali, o Metrópoles conversou com entregadores fixos do estabelecimento, em meio ao entra-e-sai intenso de pedidos. Com o celular na mão, à espera da próxima encomenda, o motoboy José Alves, 34, lembrou como era diferente o dia a dia da profissão em São Paulo quando ele começou no ramo, há 15 anos.“A empresa tinha um mapa grandão da cidade de São Paulo. Aí o patrão olhava e falava: ‘Você vai vir aqui, nesse pontinho’. Eu ficava ali uma meia hora, anotando o nome das ruas que ia entrar, sair.” Foi olhando no mapa e prestando atenção em cada rua por onde passava que José acompanhou, sobre duas rodas, as transformações dos principais endereços da capital paulista.“Isso aqui, por exemplo, não tinha”, diz ele, apontando para os prédios novos da Clodomiro. “A gente percebe a cidade crescendo.”O potiguar Gedeão Oliveira Lima, 54, é outro que viu as mudanças na cidade em cima de uma moto. Há 22 anos no ramo de entregas, ele diz que a “terra das oportunidades” piorou quando o assunto é a violência e cita o centro de São Paulo como um exemplo do problema. “Quando eu cheguei aqui, o centro era um lugar especial para a gente andar, passear num dia de domingo. Hoje ninguém consegue andar lá.”
Para além da violência, Gedeão diz que os avanços tecnológicos também têm transformado a vida na cidade. “Hoje é muito fácil para qualquer pessoa trabalhar de moto na minha profissão. Antigamente era mais difícil, não tinha o aplicativo.”
A popularização das compras on-line e dos serviços de delivery por aplicativos fez crescer o número de motoboys na cidade. O sindicato da categoria estima que mais de 220 mil entregadores trabalhem na capital paulista atualmente — não é possível precisar o número exato porque a maioria deles atua sem vínculo empregatício.
A expansão da classe, no entanto, não se traduziu em melhorias para os trabalhadores, segundo o grupo.“Hoje tem que fazer mais horas para tentar chegar ao que você ganhava antes”, afirma Douglas Michinosky da Silva, que tem 49 anos e trabalha como motoboy há duas décadas.“Tinham que pagar taxas e salários mais justos porque nós arriscamos a vida”, diz ele. “Muitos saem para trabalhar e não voltam”, complementa Cleiton Ribeiro da Silva. Ele celebra, no entanto, a criação da faixa azul, sinalização que cria um corredor para o trânsito de motos, instalada em 12 avenidas da cidade.
“Não é que não vai ter acidente, porque isso ocorre constantemente aqui em São Paulo, mas ajuda”, diz Cleiton.
O grupo diz que sonha que São Paulo valorize mais a profissão, financeiramente e também no trato diário.
“As pessoas passam aqui e olham para a gente como um animal. Não dá um ‘bom dia’. Tem que melhorar, né?”, diz José.
A pouco mais de 1 km do marco zero da cidade, uma rua localizada no bairro da Liberdade carrega a capital paulista no próprio nome. A Rua São Paulo fica na região conhecida como Baixo Glicério e abriga no número 470 um prédio construído em 1977, com quitinetes de cerca de 40m². É lá que mora, há mais de 15 anos, a mineira Maria Célia, de 72 anos, que é apaixonada pelo centro da cidade. Ela conta que a iniciativa de comprar o apartamento ali surgiu com o marido. Quando os dois se conheceram, ele morava no bairro do Campo Limpo e ela no Ipiranga, ambos na zona sul da cidade. “Ele falou: ‘Vamos mudar, eu sou doido para ir para o centro’”, lembra a aposentada. A mudança para a Rua São Paulo, no entanto, só aconteceria mais de uma década depois. “Eu fiquei muito feliz quando conseguimos porque era o sonho dele”, conta Célia. Apesar da felicidade por alcançar o sonho do marido, ela diz que, no início, sentiu medo de morar no coração da cidade. Os filhos diziam que a região era perigosa e que “não dava nem para sair na rua”. Tudo mudou quando a família conheceu melhor o bairro, segundo ela. “Eles se acostumaram tanto que estão até hoje aqui comigo. O meu filho comprou um apartamento aqui no prédio”, diz Célia. O marido dela morreu em 2018, mas mesmo sem o ex-companheiro, a mineira diz que não sai dali “de jeito nenhum”. “Eu gosto daqui porque eu vou a pé para todo lado e aqui tem tudo perto.” Hoje, ela vive no apartamento com o neto e o namorado.Apesar da paixão pelo centro, Célia não esconde os problemas do lugar. “Tem muita gente que não gosta dessa rua, diz que é muito perigosa e que alaga.” O lugar é um ponto conhecido pelos alagamentos frequentes na época das fortes chuvas. Ela diz que a violência na região piorou nos últimos tempos e cita casos recentes, como o dia em que um homem estourou o vidro de um carro e acabou assassinado pelo motorista, que era policial.
Outro problema, diz a aposentada, é o alto número de dependentes químicos na região, que migram “de um lado para o outro”, sem ter onde ficar. “Eles saem da Cracolândia e vão para o centro da Sé. Agora estão morando aqui [na rua São Paulo]”, diz.
Quando o Metrópoles pergunta para a moradora do 470 qual o seu desejo para o aniversário da cidade, ela responde sem titubear: quer que São Paulo possa cuidar melhor das pessoas em situação de rua e dependência química.
“Eu tenho vontade de ter um lugar para tomar conta deles [os dependentes químicos], é o meu sonho. Fico triste vendo eles na rua assim. O governo deveria arrumar um lugar para cuidar deles.”
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