Santos — Há exatamente um mês, na madrugada de 3 de fevereiro, o catador de material reciclável José Marcos Nunes da Silva, de 45 anos, chegava em seu barraco, na favela do Sambaiatuba, em São Vicente, litoral paulista, quando foi abordado por policiais militares e visto com vida pela última vez. Vizinhos relatam que ouviram ele implorar para não ser morto. Os gritos de “socorro” foram silenciados por dois tiros de pistola .40.
Mais tarde, naquele sábado (3/2), outras cinco pessoas morreram em incursões policiais em bairros periféricos da Baixada Santista, de acordo com dados do Ministério Público de São Paulo (MPSP). Tinha início a operação policial mais sangrenta dos últimos 30 anos no estado, deflagrada após a morte do soldado Samuel Wesley Cosmo, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota). Horas antes, ele havia sido baleado no rosto durante patrulhamento em vielas do Bom Retiro, na periferia de Santos.
Um mês depois, o saldo da Operação Verão III, como tem sido chamada pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), é de 39 pessoas mortas até o momento, na contagem oficial. No caso de José Marcos, a versão da polícia, que se repete em praticamente todos os casos, é a de que ele teria resistido à abordagem, atirando contra os policiais. Os relatos dos PMs são questionados pela Ouvidoria das Polícias e por entidades ligadas aos direitos humanos. Na última semana, eles entregaram ao MPSP um relatório apontando abusos por parte dos agentes.
Durante uma semana, o Metrópoles percorreu diferentes bairros da Baixada Santista e ouviu relatos de dezenas de moradores sobre o aumento do patrulhamento ostensivo e do número de batidas policiais na região. Enquanto nas periferias do litoral paulista o clima é de tensão, a população de bairros nobres de Santos, que ficam próximos à orla da praia, aplaude o trabalho da polícia e pede para que o reforço do policiamento continue.
Temor nas comunidades Nas vielas da favela do Sambaiatuba, o medo é que a história de José Marcos se repita. Familiares ouvidos pela reportagem dizem que chegaram a deixar a comunidade onde moram há mais de 10 anos por medo de que a polícia voltasse ao local e fizesse novas vítimas.
“A gente tem medo. Nós saímos aqui do Sambaiatuba. Ficamos três semanas fora. Voltamos faz quatro dias. Vai saber. Se aconteceu com um inocente, por que não pode acontecer com nós? Eles não estão atrás de bandido, estão atrás de vingança”, afirma uma filha de José Marcos, que prefere não ser identificada, assim como os demais personagens desta reportagem.
“Eu ouvi o barulho dos tiros, não sabia o que era. Era o meu pai sendo morto em um beco. Só fui entender depois. Os policiais falaram para mim: ‘Pode ir embora, depois tu vem ver’. Ele estava trabalhando, tinha acabado de sair do lixão”, diz ela, às lágrimas.
Um catador que convivia com José Marcos afirma que, desde a morte do colega, teme pela própria vida. “Podia ser eu. Se fosse eu passando por aquela viela naquele dia e naquele horário, teria sido eu. Eu já vi muita coisa aqui, eu sei como eles fazem. É cara que não tem nada a ver e eles matam e ‘forjam’ arma, droga. Quem ia estar lá para dizer que eu era inocente?”, afirma.
Desespero No Dique do Pissarro, a cerca de 2 quilômetros dali, moradores se habituaram a uma nova rotina. Com o aumento na frequência de batidas policiais no último mês, eles adotam diferentes estratégias para se proteger.
“É um desespero. Eu tenho dois filhos pequenos. Várias vezes a polícia vem quando eles estão saindo da escola. Várias vezes eu saí correndo para dentro de casa com medo quando a polícia vem. Coração fica acelerado, eu fico ofegante. A gente percebe que a população toda está com muita ansiedade diante de tudo isso. Alguns policiais até chegam com educação, mas tem muitos que não tem nenhum respeito”, diz uma moradora de 35 anos.
No último dia 19/2, policiais militares impediram que uma ambulância do Samu socorresse um suspeito de 20 anos que havia sido baleado no dique. A cena foi registrada em vídeo por moradores.
“Dependendo da situação, a gente vai para a rua mesmo, começa a filmar, faz aquela confusão. O pessoal começou a entender que é importante. Isso é para mostrar que eles não podem fazer o que eles querem, esculachar o morador”, diz ela.
“Novo Rio de Janeiro” No morro do São Bento, em Santos, moradores presenciaram nas últimas semanas cenas análogas ao famoso filme “Tropa de Elite”, que mostra a violência policial em morros do Rio de Janeiro. Pelo menos quatro pessoas foram mortas na comunidade desde o início da operação.
Mais de uma vez, houve correria nas escadarias do morro enquanto policiais tentavam subir. No último dia 22/2, PMs foram vistos em cima de um viaduto localizado ao lado apontando fuzis para a comunidade.
“Primeiro, lá em cima do [morro do] São Bento, os caras do ‘movimento’ soltaram os fogos avisando da chegada da polícia. Daí, os polícias subiram em cima do viaduto e começaram a apontar o fuzil para cima do morro. Parecia mesmo o Rio de Janeiro, aquelas coisas que a gente vê na TV”, diz o trabalhador de uma obra localizada ao lado.
“O clima, eu posso te falar, está horrível, nunca vi desse jeito. A sensação é que a qualquer hora pode acontecer [um tiroteio]. Quando as coisas parecem que estão se acalmando, tudo volta de novo”, diz o responsável por uma associação comunitária. “Quem mora aqui é quem realmente não tem outra opção. O crime existe e muitos moradores são reféns disso. É muito triste”.
O dono de um bar no Bom Retiro, na periferia de Santos, afirma que sua reação ao perceber a presença da polícia mudou durante a chamada Operação Verão no litoral. “Antes, passava viatura aqui e eu não tava nem aí, era como se fosse um carro normal, ou eu nem percebia. Agora, com isso que tá acontecendo, a gente já fica com medo. Quando é Baep [Batalhão de Ações Especiais], Rota, então…”.
“De uns dias para cá, parece que deu uma acalmada nessa região. Mas a gente nunca sabe o dia de amanhã. O tráfico existe aqui, não tem como negar isso. E eles continuam. Não vai ser operação desse jeito que vai mudar”, diz um cliente do estabelecimento.
“Dedo mais mole no gatilho” Às 13h da última sexta-feira (1º/3), início de uma tarde ensolarado, três amigos tomavam cerveja debaixo de um guarda-sol na Praia do Embaré, bairro nobre de Santos, quando foram questionados pelo Metrópoles a respeito das impressões sobre a Operação Verão da PM.
O grupo foi unânime em dizer que a sensação de segurança aumentou e que o reforço do policiamento deveria continuar. “Tem bem mais polícia na rua”, disse o aposentado José Francisco Martinez. “Que continue assim”.
Roberto Bittar, que preferiu não declarar sua ocupação, foi além e sugeriu que a polícia poderia atirar mais. “Olha, tá faltando um detalhe… Deixa o dedo mais mole no gatilho, que aí a segurança fica melhor ainda. Entendeu?”.
Ao Metrópoles, ele questiona os relatos de moradores de bairros periféricos da Baixada Santista de que a polícia está matando inocentes: “Não tem abuso da polícia, tem o revide. O traficante respeita quem comanda. O pessoal que veio da Rota, de São Paulo, veio para realmente limpar”.
Opiniões parecidas podem ser ouvidas em toda a orla da cidade. Segundo uma aposentada que preferiu não dizer seu nome, em alguns casos, seria necessário colocar criminosos em um “paredão” e “metralhar”.
“Quando é aqueles que merecem ir embora… Matou, roubou, fez negócio bem pesado? Tem que começar pelos grandões. Eu acho que tem que pôr tudo no paredão e metralhar”, diz ela.
O aposentado Antônio Silva, que caminhava pelo jardim da orla de Santos durante a manhã daquela sexta, afirma que é melhor ver um “bandido” morto do que um policial.
“Tem que fazer o que estão fazendo. O tráfico tomou conta da Baixada. Se tem um confronto, um vai morrer. Para mim, tem que ser o bandido”, diz.
Número de mortos O número de mortos na Operação Verão III, de acordo com a Secretaria da Segurança Pública (SSP), era de 39 até esse sábado (2/3). A contagem teve início em 3 de fevereiro, após a morte do soldado Samuel Wesley Cosmo, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a tropa de elite da PM.
No entanto, de acordo com dados do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp), do MPSP, a onda de mortes na Baixada Santista começou antes, após a morte do PM Marcelo Augusto da Silva, em 26 de janeiro.
Entre 28 e 31 daquele mês, foram 10 casos, sendo três deles envolvendo policiais militares fora de serviço, no dia 30/1, no Guarujá.
Considerando todas as nove cidades da Baixada Santista, foram 62 mortes decorrentes de intervenção policial nos dois primeiros meses deste ano, praticamente uma morte por dia. Foram 21 em Santos, 16 em São Vicente, 14 no Guarujá, 7 em Cubatão, 2 na Praia Grande, 1 em Mongaguá e 1 em Itanhaém. Bertioga e Peruíbe não registraram mortes relacionadas a policiais militares neste ano.
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