Com letras miúdas e papel dobradinho, as bulas de papel são parte tradicional dos medicamentos. Basta abrir uma caixa para encontrar o documento, que traz informações importantes sobre como utilizar o remédio, efeitos colaterais e interações medicamentosas, entre outros dados essenciais.
Porém, em um Brasil cada vez mais conectado, onde cada pessoa tem 1,7 celulares, de acordo com a FGV, será que faz sentido continuar com as bulas impressas ou seria melhor migrar para uma versão digital, que pode ser atualizada facilmente e incluir até vídeos e áudios? Será que essa modernidade seria acessível para toda a população, inclusive idosos, que são os maiores usuários de medicamentos?
A proposta é colocar um QR Code nas embalagens, a exemplo do que já é feito com alguns medicamentos de uso sem prescrição médica e que são vendidos sem caixa, como analgésicos ou antigripais. Bastaria apontar a câmera do celular para ter acesso ao texto atualizado e outras mídias com informações sobre a medicação.
A discussão é complexa, mas parece estar próxima de uma solução. Depois de uma consulta pública, os diretores da Anvisa deveriam ter votado pelo fim ou não das bulas físicas em amostras grátis e medicamentos destinados ao uso hospitalar em 26 de junho — na prática, seria o primeiro passo em direção à extinção das bulas físicas em outros tipos de remédios.
O assunto foi retirado da pauta em cima da hora, depois de o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) se posicionou contra a proposta. A indústria farmacêutica é a favor.
A Anvisa deve votar o fim das bulas físicas para essas classes de medicamentos na próxima quarta (10/7). Em nota enviada ao Metrópoles, a agência explica que o tema foi retirado de pauta pelo relator para avaliações adicionais, e que será retomado na próxima reunião da Diretoria Colegiada.
O consumidor precisa da bula física? Para o Idec, as bulas digitais não são vilãs, mas deveriam ser consideradas como um complemento à versão impressa. “Consideramos uma boa via para complementar o acesso à informação, mas não deve ser a única opção”, explica a pesquisadora do programa de saúde do Idec, Marina Magalhães.
Ela aponta informações de uma pesquisa do instituto de 2021, que mostrou que o acesso à internet ainda é muito limitado na população brasileira, principalmente para as pessoas mais pobres, que não têm a conectividade adequada nem para acessar serviços públicos.
Porém, para além da dificuldade de acesso à internet de parte da população, Marina critica a maneira como a Anvisa tem conduzido a discussão. A pesquisadora conta que foram dispensadas análises de impacto regulatório, e evidências (como o estudo de acesso à internet).
“A agência abriu a consulta pública em dezembro, mandamos contribuições, mas o texto que vai ser votado acatou muitas reivindicações das farmacêuticas e quase nenhuma da sociedade civil. Essa proposta que a Anvisa vai votar é ainda pior do que a que foi submetida à consulta pública. Para além da restrição de acesso para as populações mais pobres, temos um problema grave na condução do processo regulatório. Se a Anvisa tomar essa decisão, não será com base técnica”, afirma Marina.
O Idec vai pedir que o assunto seja retirado da pauta novamente. “O mínimo que a gente pede é que, se a proposta for aprovada, a Anvisa defina indicadores claros do que será analisado na segunda etapa do processo, que deve desobrigar a bula para outras classes de medicamentos. Precisamos saber como essa primeira fase impactou o processo e indicadores técnicos sérios para avaliar”, explica a pesquisadora.
Abrindo as portas para a modernidade A indústria farmacêutica acredita que o Brasil está, sim, preparado para abandonar de vez as bulas impressas e, de quebra, economizar papel e tinta. Com o conteúdo disponível na internet, seria possível atualizar informações com agilidade, além de envolver o paciente no próprio tratamento com infográficos e vídeos de especialistas falando sobre o medicamento.
As fabricantes argumentam que o brasileiro sabe, sim, se virar com a tecnologia: dois exemplos seriam a adesão em massa ao Pix e a entrega da declaração de imposto de renda, que é feita 100% online desde 2011.
“O brasileiro é o povo que mais usa o Whatsapp, que interage no TikTok. Dos 28 milhões de brasileiros que não têm conectividade e nem celular, muitos não sabem ler, então realmente não adianta a bula de papel. A gente não enxerga prejuízo ao consumidor”, afirma o presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) e membro titular do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Nilson Mussolini.
Ele aponta que, dependendo do que for apurado nesta primeira fase de liberação da obrigatoriedade das bulas físicas, possa se chegar a um momento intermediário com uma espécie de mini bula, com só o que interessa ao paciente.
“É um teste que a Anvisa está fazendo, até para ter uma forma de controle melhor do uso e dispensação de medicamentos. Muitas pessoas compram remédio sem necessidade ou porque um amigo disse que era bom. Eles se guiam pelo que está escrito na bula e não pelo que disse o médico, é até um risco para o paciente esse tanto de bula por aí”, diz.
Marina é contra a proposta de uma mini bula. Para a pesquisadora do Idec, a bula tradicional tem muita informação por decisões regulatórias históricas da Anvisa, e que uma versão “resumida” seria quase um desrespeito ao órgão.
Lobby e meio ambiente Mussolini aponta ainda que há um lobby das gráficas, que querem a permanência das bulas. “Por mais que o papel seja de madeira de reflorestamento, vai contra o meio ambiente, e essa é uma questão que preocupa muito a indústria. Somos da saúde, queremos preservar a saúde do consumidor”, afirma.
Ele conta que, em alguns casos, como em medicamentos oncológicos, a bula é tão grande que é preciso aumentar o tamanho da caixa do remédio — e o documento só seria lido pelo médico, já que o paciente não tem contato com o produto antes da administração.
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