Abordando a modernidade, o ensaio de Marshall Berman, “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, publicado nos anos 1980, tem como cenário as areias do Rio Araguaia, fronteira entre Tocantins e Pará. Após quase quatro décadas desde a primeira edição no Brasil, mergulho nesta abordagem histórica e literária que conecta figuras como Goethe, Marx, Foucault e Baudelaire, explorando a saga da modernidade.
Situada em meio às vastas praias moldadas pela estiagem do Rio Araguaia, encontro-me imersa na contradição da era moderna. Com apenas uma barraca, um livro, um caderno, uma caneta, um celular e uma conexão à internet instável, busco transmitir essa crônica, contando com a sorte de captar o sinal.
Ao desbravar mais de 300 quilômetros de Palmas, capital de Tocantins, deparo-me com uma cidade planejada, de vias amplas e espaços vazios, reminiscente de Brasília em seu padrão urbanístico, onde os habitantes a apelidam de “capital da rotatória”, tal a abundância dessas estruturas para regular o tráfego.
Visualizando o nascer do sol de dentro de uma barraca de acampamento, aguardo pela despertar dos companheiros de jornada, testemunhando como a modernidade ainda enfrenta barreiras na tentativa de organizar não só as cidades, mas também as vidas que nelas ecoam.
No entorno das barracas residem os nove irmãos remanescentes da prole de seu Lorim e dona Alice, originários das raízes do antigo Goiás, hoje parte do Tocantins. Com idades entre 67 e 82 anos, eles perpetuam a tradição de acampar na desolada praia há mais de meio século, desde a chegada dos pais em meados do século XX.
Esses nove irmãos Noleto representam um Brasil atemporal, celebrando anualmente o reencontro com abraços fraternos, batidas ritmadas e cantos que remetem às memórias ancestrais da convivência com povos indígenas como os carajás, xavantes e xerentes.
Mesmo após mais de cinco décadas de transição para a vida urbana, esses irmãos mantêm acesa a chama do paraíso da infância, um local onde a comida e a camaradagem são compartilhadas em alegria e simplicidade, ressignificando a jornada da modernidade na era contemporânea.
A influência compartilhada, proveniente do amor dos pais e das muitas histórias preservadas na memória coletiva familiar, permanece evidente e é recriada a cada nova estiagem do Araguaia. Os nove irmãos, nem sempre todos juntos, retornam ao paraíso todos os fins de julho.
O rápido processo de urbanização pelo qual o Brasil passou, possivelmente um dos mais céleres do mundo, nos compeliu, como brasileiros, a uma adaptação obrigatória ao ambiente metropolitano e ao mundo da mercadoria, como mencionado pelo yanomami Davi Kopenawa. Os Noleto, de forma quase instintiva, resistem a perder os laços profundos e sólidos que os unem desde tempos ancestrais.
E como isso se relaciona com o livro de Berman? Tudo. A saga da modernidade, com a sedução do progresso tecnológico sem fim, dividiu o mundo em dois, como se o antes jamais tivesse existido e o depois fosse a salvação de nossas sombras internas.
Berman antecipa a tragédia: a Terra não suportará tanta voracidade. Não necessariamente ele, mas os autores dos quais extrai a percepção do mundo moderno. James Brooks, em “A Morte do Progresso”, afirma que “a força letal que deveria ser extirpada antes que extirpasse toda a humanidade era a ‘moderna cultura do progresso'”.
A noite já caía, a lua vermelha ainda não se erguera atrás da mata, e um dos irmãos Noleto, representantes de uma família movida por música, memória e afeto, dedilha e entoa “Mágoas de Boiadeiro” (Almir Sater e Sérgio Bavini):
“Antigamente, nem em sonho existia
Tantas pontes sobre os rios
Nem asfalto nas estradas”.
E mais à frente:
“Tenho saudade de rever as currutelas
As mocinhas na janela acenando com uma flor
Por tudo isso eu lamento e confesso
Que a marcha do progresso é a minha grande dor”.
A dor se desfaz nas águas do rio, na areia da praia e no infinito do céu. Sempre que possível, embarco nessa jornada ao paraíso com os irmãos Noleto. (Neste 2024, algo raro, todos os nove irmãos vieram juntos).
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