Analisamos as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos durante um jantar com os professores da Harvard Law Terry Fischer e David B. Wilkins em dezembro de 2000, em Cambridge, Massachussetts.
Em meio às discussões, Fischer expressou sua preocupação ao afirmar que a Suprema Corte estava prejudicando a democracia, criando um clima de desesperança em relação ao assunto.
No contexto, estava fresca na memória de todos a acirrada disputa presidencial entre George W. Bush e Al Gore, onde a diferença no colégio eleitoral da Flórida, que decidiria o vencedor, era menor que 0,5% após a contagem inicial dos votos.
O advogado de Gore, Laurence Tribe, solicitou à Suprema Corte uma recontagem dos votos por máquinas de acordo com a legislação eleitoral do estado. No entanto, as cédulas dos diferentes condados não seguiam um padrão, o que poderia propiciar erros e manipulações.
O desfecho dessa situação foi a decisão da Suprema Corte a favor de Bush, alegando que o processo de recontagem da Flórida estava sendo conduzido de maneira inconstitucional, e, portanto, suspendeu a ordem de recontagem para emitir uma rápida decisão.
Terry Fischer ficou atônito com as justificativas apresentadas, considerando que a Corte baseou sua decisão em questões políticas, declarando que o sistema eleitoral não inspirava confiança nos cidadãos, e que a avaliação estava limitada às circunstâncias presentes, sem criar jurisprudência futura.
Essa decisão foi única, tomada sob pressão e sem a intenção de servir de base para futuros casos.
Em seu livro “A Constituição Norte-americana É Democrática?”, o renomado cientista político Robert Dahl já antecipava possíveis falhas na modelagem eleitoral da democracia.
Nos Estados Unidos, o processo eleitoral possui características que o diferenciam do modelo direto comum a muitas democracias, sendo o voto realizado por colegiados, variando de acordo com os sistemas, padrões e regras de cada estado. Isso pode resultar em situações em que a maioria dos votantes não elege o presidente, mas sim a minoria, como ocorreu nos casos de Gore, que teve mais votos do que Bush, e de Hillary, que teve mais votos do que Trump.
Segundo Fischer, a politização judicial suprema começou a emergir timidamente e se desenvolveu ao longo dos anos, tornando-se cada vez mais evidente e presente atualmente, de diversas maneiras. Em 2016, o Senado de maioria republicana recusou-se a decidir sobre a nomeação de Merrick Garland por Barack Obama para a Suprema Corte, com Mitch McConnell bloqueando a escolha e deixando claro que Obama não preencheria a vaga.
Essa estratégia política de bloqueio foi bem-sucedida, e quando Trump assumiu a presidência, ele indicou e teve aprovados ministros como Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Em 2022, com uma Corte já com maioria republicana, decisões importantes foram tomadas, como a revisão da histórica decisão Roe v. Wade sobre o aborto e a ampliação do acesso a armas.
Já em 2024, a Corte concedeu imunidade para atos oficiais dos presidentes, incluindo Trump. O presidente John Roberts, conservador nomeado por George Bush, defendeu em seu voto pela maioria que o presidente não pode ser acusado pelo exercício de seus poderes constitucionais e deve ter uma imunidade presumida de acusações por seus atos oficiais.
A ministra Sonia Sotomayor, indicada por Obama, manifestou-se contrariamente, alertando para a gravidade da decisão e apontando que a imunidade penal a ex-presidentes coloca o presidente acima da lei, contradizendo o princípio fundamental da Constituição. A divisão na Corte ficou clara, e a decisão levantou questionamentos sobre a imunidade presidencial contra processos criminais federais.
Essa decisão teve repercussão internacional, gerando preocupações sobre a aumentada discricionariedade e poder do presidente, inclusive em declarar guerra. O debate sobre os limites do poder presidencial e a proteção da lei sobre a figura do ex-presidente ganhou destaque e levou a questionamentos sobre os rumos da democracia no país.O jornal Financial Times, sediado em Londres, interpretou que a corte teria comprometido um dos fundamentos da democracia: Com as recentes decisões judiciais, a responsabilidade de julgar as ações de um presidente foi transferida para o Senado e a Câmara dos Deputados, uma vez que os tribunais agora têm limitações nesse sentido. Entretanto, a legislatura atual dos Estados Unidos tem se mostrado inadequada para conter um líder populista, como visto nos fracassados processos de impeachment de Trump.
Assim como Montesquieu, a corte considerou que acusações constantes poderiam prejudicar a efetividade do presidente em seu cargo, evitando que o Executivo atue de forma apreensiva. Para o Chefe de Justiça John Roberts, a rotineira submissão dos atos oficiais de um ex-presidente a investigações criminais colocaria em risco a independência do Executivo.
A definição de quais ações são consideradas oficiais ou não pelo presidente agora dependerá das decisões de juízes de instâncias inferiores, o que pode gerar maior arbitrariedade. O presidente ganha assim uma carta branca, aumentando a incerteza sobre os limites de seu poder.
Em reação a esses movimentos, o presidente Joe Biden propôs uma emenda constitucional visando reformar a estrutura da Corte, sugerindo mandatos limitados para os ministros, em vez de vitalícios. Para Biden, a questão vai além da politização da Corte, atingindo a ética e a possibilidade de corrupção que minam a legitimidade do sistema democrático.
Um dos casos mais emblemáticos é o do ministro Clarence Thomas, que tem sido alvo de críticas por sua relação próxima com o bilionário republicano Harlan Crow. A ProPublica revelou que Thomas desfrutou de regalias luxuosas às custas de Crow por mais de duas décadas, incluindo viagens e estadias em propriedades do bilionário.
A proximidade de ministros da Suprema Corte com partes interessadas, como demonstrado no caso de Clarence Thomas, levanta questões não apenas sobre transparência financeira, mas sobre a imparcialidade e a integridade do sistema judiciário. Relações obscuras entre judiciário e setores privados podem comprometer a justiça, como bem destacou Oliver W. Holmes ao dizer que a luz do sol é o melhor desinfetante.
Em um artigo de 2023, o New York Times expôs as conexões empresariais questionáveis da esposa de John Roberts, atual Chefe de Justiça da Suprema Corte. Jane Roberts, teria uma empresa de consultoria especializada em estratégias judiciais ligadas à Suprema Corte, gerando mais de US$10 milhões em consultorias para renomados escritórios de advocacia. A revista Forbes corroborou essas informações.No Supremo, a responsabilidade recai, não no sol da mídia, mas sim na obscuridade da falta de transparência.
Em 2021, Martha-Ann Alito, esposa do ministro Samuel Alito, provocou polêmica ao hastear a bandeira americana de cabeça para baixo, um gesto associado aos apoiadores de Trump, em suas propriedades na Virgínia e Nova Jersey, conforme relatado pelo Washington Post.
Quando um vizinho exibiu uma placa com o texto “F* Trump”, a esposa de Alito reagiu, negando qualquer conotação política. Indicado por George W. Bush, Alito afirmou que esses “microssintomas” ou talvez “microbactérias”, se não forem controlados, podem se tornar uma infecção que gera grandes problemas institucionais, inflamando a democracia.
Diferentemente do cenário brasileiro, a Suprema Corte americana busca tratamento preventivo. Em 2023, criou e adotou um código de conduta. O preâmbulo declara a importância das regras e princípios éticos como um referencial para a conduta dos magistrados.
No Brasil, o ministro Alexandre de Moraes afirma não ser essencial que o Supremo tenha seu próprio código de conduta, contudo, destaca a importância de seguir as normas éticas da Lei Orgânica da Magistratura, que preconizam deveres e proibições para os magistrados.
Para o filósofo do direito Ronald Dworkin, a colaboração entre os ministros na construção de uma moralidade constitucional coesa é essencial. Os integrantes do Supremo devem considerar seus colegas do passado e do futuro na busca por harmonia em suas contribuições.
Os Supremos são como orquestras, onde a sinfonia não se completa apenas com solistas. É fundamental reconhecer que a independência e imparcialidade dos juízes são valores culturais e éticos globais.
Recentemente, em Paris, o juiz Benjamin Lowe foi suspenso dos Jogos Olímpicos após uma foto ao lado de um dos…A Associação Internacional de Surfe removeu um árbitro da competição, conforme mencionado pelos surfistas participantes. A decisão foi tomada visando preservar a imparcialidade, integridade e justiça do evento, e foi apoiada pelo Comitê Olímpico Internacional.
A emenda proposta por Joe Biden provavelmente não será aprovada e seguirá para o esquecimento, como muitas emendas constitucionais americanas ao longo da história.
Ao analisar as imagens, fatos, e dados vindos dos Estados Unidos, Ruy Castro levantou questionamentos sobre a verdadeira natureza da democracia naquele país. Ele se perguntou se, ao longo dos séculos, convivemos de fato com a maior democracia do mundo ou se fomos iludidos por uma fabricação americana.
Uma pergunta marcante foi feita ao grande artista pernambucano J. Borges, que recentemente faleceu: “Quando você sabe que sua obra é bem-sucedida?”. O artista popular, oriundo das camadas mais humildes da sociedade, respondeu de forma simples e significativa: “Quando o cordel, a poesia, toca o sentimento do povo”.
A palavra “tocar” possui diversos significados. Pode despertar indignação e contestação, ou então admiração e aceitação. Cabe aos órgãos supremos a responsabilidade de decidir sobre esses dilemas e controvérsias.
Joaquim Falcão é membro da Academia Brasileira de Letras, atua como professor de direito constitucional e desempenha o papel de conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Ele contribui com sua expertise e conhecimento para diversas questões de relevância nacional e internacional.
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