Vem cá, julho, não mente

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Na última semana de junho precisei voltar ao hospital onde minha mãe morreu, acompanhando um parente. Vários gatilhos dispararam em sequência enquanto percorria outra vez os corredores amarelos e observava o movimento de médicos, enfermeiros e pacientes. Não, a vida por aqui não se parece em nada com um episódio de ‘Grey’s Anatomy’ ou de qualquer uma dessas séries.

Para além das paredes amarelas, a espera por atendimento médico se expandia ao pátio lateral externo, e em cadeiras verdes de plástico, gente com todo tipo de sintomas aguardava ouvir chamar um nome, um número. Ao lado da emergência, uma unidade pediátrica enchia de vida o término inesperado de junho. Uma chuvinha fina caía sobre nós, como se estivéssemos no set de algum filme.

A simples presença de crianças em qualquer ambiente sacode tempo-espaço como se faz com um tapete poeirento à janela de um longa-metragem ambientado numa vila italiana. Na emergência, uma multidão se revezava, rostos, corpos, dores diferentes. Engarrafamento de automóveis no acesso, estacionamentos pagos lotados, veículos improvisando vagas gratuitas, sobe e desce de ambulâncias.

De vez em quando, como se imitasse alguém gritando muito alto, uma sirene interrompia as conversas daqueles que aguardavam do lado de fora do hospital, atados aos seus smartphones. A chegada das ambulâncias soava bem solene, feito o momento no café imortalizado no poema de Manuel Bandeira. Mas, em lugar de chapéus, erguiam-se maquinalmente vários aparelhos celulares. 

Enquanto desciam as macas, por breves segundos,  ausentes de toda irrelevância, os pacientes seguiam com os olhos cada urgência, registravam com os olhos cada resgate, engatavam conversas com seus acompanhantes. A tal catarse. Escrevo esta crônica dentro do hospital onde a minha mãe morreu há quase sete anos. O ar-condicionado do posto 2 está excessivamente baixo. Sinto muito frio. 

Não lembrei de pegar em casa um casaco, mas trouxe o livro sobre literatura e animalidade.  Postei uma foto melancólica do estacionamento do hospital  à noite e, pela milésima vez, coloquei na trilha sonora uma canção de Nick Cave. Sinceramente, acreditei que envelhecer iria me deixar menos sensível do que fui durante a juventude. Ah, essa mania de caçar sentido em tudo. 

Vem cá, julho, não mente. Eu esperei para te segurar pelos cabelos. Suavemente, como se faz com uma amante. Uma pilha de livros me aguarda. E, embora seja inverno em nosso hemisfério, quase posso sentir a maresia em seu perfume. Mesmo aqui dentro, onde tudo cheira a morte e a vida e a infância. Mesmo aqui dentro, onde tudo é substância do futuro, e do passado e do presente.

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