Conheça o laboratório da Ufba que transformará corpos em peças para estudos

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Era fim de tarde de 15 de agosto, uma segunda-feira, quando o carro de uma funerária estacionou no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Bahia (Ufba), no Canela. O corpo trazido agora jaz em uma maca de metal do primeiro laboratório de plastinação humana do estado, onde uma técnica vencerá o tempo para ensinar do que é feita a vida. 
 
Os alunos da turma de anatomia humana manuseiam protótipos enquanto a reportagem, no laboratório anexo à sala de aula, vê em minúcias a materialidade de todos nós. Há quatro armários, dois freezers, e, ao lado do corpo humano deitado, caixas com órgãos e dois gatos falecidos há cinco anos.

Um deles é Sharlene, a gata persa criada durante 13 anos por Telma Masuko, professora de Anatomia que idealizou o laboratório aberto em agosto. 

???O que a gente sempre fala é que o corpo é uma arte. E é fácil produzir essa arte???, diz ela.

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Sharlene, a gata doada pela tutora (Foto: Acervo Pessoal/Telma Masuko)

A plastinação é um método que troca os líquidos do corpo de animais ou humanos por outros capazes de conservá-lo. O mais usado é o silicone, seguido do poliéster ou resina. No acervo do novo laboratório do ICS, há, por exemplo, um fígado com cirrose e um coração inchado pela doença de Chagas. 

???Um fígado com cirrose, você não encontra facilmente. Uma coisa é falar disso ou mostrar uma réplica, outra coisa é mostrar os danos da cirrose ao fígado???, defende Telma.

Em três bandejas, há um apêndice, laringes, línguas e um rosto ??? os olhos azuis são de resina. Ao toque, os objetos de cor ocre são maleáveis. Não há odor vindo do laboratório, nem das peças que, pelo aspecto, poderiam ser um objeto qualquer, mas, por acaso, são partes do que foi vivo.

A transformação do corpo em peças plastinada 
A 1h30 do dia 15 de agosto, o hospital comunicou a morte de Maria à família. Vítima de uma parada cardiorrespiratória, a aposentada deixou três filhos, sete netos, cinco gatos, dois cachorros e o marido, Marcelo Fiuza, 58. Ainda naquela madrugada, o viúvo escreveu à professora Telma. Era hora de cumprir o desejo da falecida –  ter o corpo doado para estudos.
 
Para a família, adepta do Espiritismo, o corpo é só matéria e a vontade de Maria foi atendida. ?? o primeiro corpo doado desde a abertura do laboratório de plastinação. A mente por trás do espaço é uma pesquisadora católica que não vê contradição entre transformar peças humanas em peças de silicone e a religião que defende a sacralidade do corpo. 

???[O que eu faço] Me ensina muito, a cada ano, sobre vida e morte???, contrapõe Telma.

Para funcionar, um laboratório de plastinação precisa de 11 materiais. O método de conservação é precedido da interrupção da decomposição do corpo, por meio da injeção de formol. Só então o processo, quase industrial, pode começar.
 
O corpo ??? ou parte dele ??? é levado a um banho de acetona que só terminará depois da remoção da gordura impregnada nos tecidos. Findada a espera que pode durar quatro meses, o material segue para uma câmara a vácuo. ?? quando a acetona evapora e o corpo é preenchido por silicone. A espera é menor: de duas a cinco semanas. Para Telma, é a parte mais complexa, pois é necessário um controle meticuloso da pressão na bomba de vácuo que realiza o processo.

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Demonstração de plastinação com corações de galinha (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Se tudo der certo, esse pedaço está pronto para ser moldado por meio de pinças, blocos de espuma ou agulhas. Cada um terá uma forma, de acordo com o aspecto a ser realçado. O tempo de trabalho, portanto, depende da complexidade do serviço, que pode resultar em um corpo humano em pose de balé ou em uma amostra de estômago manipulável para estar cheio ou vazio.

Por último, o material é colocado em uma câmara de vácuo, de onde sai como as peças dispostas nas bandejas de metais: ocres, uns mais maleáveis outros mais rígidos, e inalteráveis. Assim, tão próximas, escancaram a finitude de tudo. 

Corpos falsos x Corpos reais 
O laboratório abre em meio a cortes orçamentários na universidade. ?? um projeto ainda inacabado: R$ 4 mil pagariam as últimas necessidades. Em junho, o governo federal cortou 12,4% do valor que seria destinado à Ufba. Nada que impossibilite os planos da professora Telma e dos cinco pesquisadores e dois técnicos que a auxiliam espaço, como Edmundo Lomba, 47.

“Quando Telma me mostrou a primeira peça platinada, foi muito gratificante, mesmo que eu queira retornar ao pó quando morrer eu aprendi a dar mais valor a vida. E para a ciência é uma evolução grande”, diz o técnico em Anatomia Humana.

Diante da escassez de corpos, da necessidade destes para estudos e do preço de protótipos, a plastinação é mesmo uma saída. No ano passado, dois mil alunos de cursos como Medicina, Enfermagem e Nutrição frequentaram 46 disciplinas oferecidas pelo Departamento de Biomorfologia. 

A plastinação de um corpo inteiro demora até dois anos e custa R$ 2 mil, mas a espera e o gasto compensam. Um esqueleto (falso) custa, em média, R$ 4,9 mil. “Apesar das dificuldades, trabalhamos com o objetivo de exercer de forma plena o ensino, e a busca de inovação. A plastinação contribui para uma formação mais humana”, completa Marcelle Rossi, diretora do departamento de Biomorfologia.

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Parte da equipe do novo laboratório (Foto: Marina Silva/CORREIO)

O estudo com corpos humanos, como o método da plastinação, informa a Sociedade Brasileira de Anatomia (SBA), ajuda no desenvolvimento de procedimentos cirúrgicos, nas descobertas sobre doenças e numa formação humanística.

Geralmente, os alunos aprendem anatomia em réplicas em 3D, peças glicerinadas ou corpos conservados no formol, substância considerada cancerígena pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Plano de laboratório existia há mais de 10 anos 
Telma conheceu a plastinação, nos anos 80, pelas mãos do criador da técnica, o polonês Gunther Von Hagens, em um congresso de Anatomia, no Rio de Janeiro. Ela vivia em Londrina, sua terra natal, e ficou admirada. Quase 20 anos depois, quando participou de um congresso no Havaí, em 2010, Telma decidiu implementar a plastinação na Ufba, onde chegou em 2006. 

No ano seguinte ao evento, partiu para uma especialização na Universidade de Toledo, em Ohio. Foi o pior inverno em 50 anos na cidade. O coordenador do curso era Carlos Baptista, brasileiro precursor da técnica na América Latina. 

???Eu queria fazer aquilo, mas era muito caro???, recorda Telma.

Von Hagens havia patenteado o método e um laboratório custava $ 400 mil dólares (R$ 2 milhões) ??? depois da quebra de patente, em 2006, os custos caíram 75%.

De volta à Ufba, ela tentou implementar o laboratório imediatamente, mas faltava verba. Dos cursos que fazia no exterior, retornava com peças plastinadas para utilizar em aulas. Algumas delas foram apresentadas a pessoas com deficiência visual, estudantes da rede público de ensino, por meio do projeto chamado Tecendo o Corpo Humano, que existiu entre 2012 e 2015. 

Em fevereiro de 2020, o laboratório de plastinação ensaiou uma abertura, mas a chegada da pandemia, um mês depois, atrapalhou os planos.

A doação de corpos  
Em 2017, a Ufba criou o único programa estadual de doação voluntária de corpos, o ???Vida Além da Vida???. Desde então, houve uma doação por ano. Foi uma prima de Maria quem falou da iniciativa. ???Ela detestava velório. Queria ser cremada, mas depois que soube dessa possibilidade, decidiu por ela???, recorda o viúvo Marcelo.

Leia mais: Veja abaixo detalhes do programa de doação de corpos
 
A mulher com que ele passou 37 anos chamou os três filhos para comunicá-los.  A lei permite essa possibilidade desde 2002, mas um familiar precisa fazer valer a vontade do doador. ???Foi uma escolha tranquila. ?? o corpo, a alma já fez o desencarne???, diz Marcelo. No início deste ano, Maria havia descoberto um tumor no pulmão e veias entupidas. 

???A vida dela sempre foi para ajudar???, diz Marcelo ao reforçar que vê a doação como ajuda à ciência. 

A aquisição de cadáveres pela maioria das instituições brasileiras ainda é acontece quando secretarias de Segurança Pública doam corpos não reclamados – o Departamento de Polícia Técnica da Bahia não informou quantos corpos não buscados por familiares foram doados.

Os indivíduos que tiveram morte violenta ou por doença infecciosa não podem ter os corpos doados. O primeiro por questões judiciais e o segundo pelos riscos de contágio. A doação voluntária é permitida, desde que a pessoa tenha 18 anos.

Ivani Porto não sabe o que é plastinação, mas doará seu corpo, depois de morrer. Há duas semanas, ela foi com uma neta entregar o documento que atesta sua condição de doadora no ICS da Ufba.

Esta mulher de 61 anos, 40 deles como trabalhadora doméstica, decidiu ser doadora após assistir a um filme ??? ela não lembra qual – em que alunos de Medicina estudavam o corpo humano. 

???Se doar meu corpo é de grande ajuda, fico feliz. A terra vai comer o corpo, por que não doar e poder salvar vidas????, acredita ela, adepta do espiritismo, que fala da morte como quem conta que logo mais vai à padaria. 

Plastinação surgiu na Alemanha 
Depois de experimentos com lâminas de tecidos humanos, na alemã Universidade de Heidelberg, Von Hagens injetou, por curiosidade científica, silicone em um rim e viu esse órgão ser conservado como uma escultura. Os estudos da anatomia humana não começavam ali. No século 18, por exemplo, o anatomista francês Honoré Fragonard usava cera para preservar cadáveres. 

A descoberta de Von Hagens atingiu um novo patamar de conservação (a validade é indeterminada), apresentado ao mundo naquele 1977. Enquanto o polonês dava um salto na anatomia moderna, Telma iniciava a graduação em Biomedicina no sul do Brasil.
 
O ‘boom’ da plastinação aconteceria entre 1995 e 1999, com exposições de Von Hagens pelo mundo. Desde então, ele levou peças plastinadas a quatro continentes, nunca ao Brasil.

 
Von Hagens plastinou 16,5 mil peças, expostas em um museu criado por ele na Alemanha. Em 2009, colheu a repulsa de uns e a admiração de outros ao plastinar um homem e uma mulher durante um coito. Os dois foram plastinados por um Von Hagens interessado em mostrar outro ângulo do coito humano.  
 
O polonês não é bem recebido por todos ao provocar a fronteira da morte tão cruamente. Aos 77 anos, o polonês, sempre com um chapéu preto que lhe cobre a calvície, repete o desejo de ter o corpo destinado à plastinação quando morrer. Em artigo escrito em 2018 para o jornal inglês The Guardian, ele refletiu:

???O corpo pós-morte é de confronto: nos faz abandonar nosso repúdio inconsciente e consciente da morte???

No país onde Von Hagens trabalha e no Brasil, não há crime em aplicar métodos de conservação de corpos. ???O que o código penal  brasileiro fala é sobre o vilipêndio ao cadáver: ridicularização, desrespeito a peças anatômicas. Se a universidade tem a tutela do corpo, ela tem que zelar por ele???, diz João Beccon, doutor em Bioética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
 
A exposição delas também não é proibida e as peças podem, ainda, ser transferidas. ???Não é venda de corpo, mas de serviço. ?? como quando você recebe uma transfusão sanguínea e paga. Você não paga pelo sangue, mas pelo serviço???, diferencia Beccon.
 
O laboratório de plastinação da Ufba não tem pretensões artísticas, nem de transferência das peças. No dia 2 novembro (Dia de Finados), o departamento responsável pelo espaço realizará a Cerimônia ao Cadáver. No evento, que ocorre em instituições com projetos de doação de corpos, estudantes homenageiam os corpos doados que tanto podem ensinar. 

Programa Transcendendo Além da Vida

Quem: Qualquer pessoa com mais de 18 anos pode decidir ser um doador. A possibilidade pode ser discutida no Instituto de Ciências da Saúde da Ufba

Como: Entrar em contato com a Universidade e preencher o ???Termo de Intenção de Doação Voluntária???, que deve ser assinado pelo doador e por duas testemunhas (parentes de primeiro grau). O documento é disponibilizado pelos contatos abaixo

Contatos: 71 3283-8888 (de segunda a sexta) | [email protected]

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