Filme A Mulher Rei também conta a história dos baianos

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Mais do que a obra em si, ao prestigiarem no cinema o filme A Mulher Rei, os baianos  devem também olhar para a história de seus antepassados. Retratada no longa, a relação entre Portugal  e os reinos de Daomé e Oyó fez com que quase um milhão de africanos da região do Golfo do Benin fossem  traficados até Salvador. Foram retirados à força de sua terra, mas mantiveram em outro continente costumes e tradições que, séculos depois, tornaram-se pilares de parte do que hoje conhecemos como baianidade.

Os oriundos do local que hoje compreende os países da Nigéria, Benin e Togo representam mais da metade dos cerca de 1,5 milhão de escravizados que aportaram em Salvador, segunda cidade que mais recebeu africanos em toda a América durante os quase quatro séculos de escravidão. ???Ou seja: parte importante dos antepassados dos baianos vieram escravizados desses antigos reinos???, pontua o historiador Carlos da Silva Júnior, professor da Ufba e Uefs.

A mancha de dendê que não sai começou a ser tingida pelos daomeanos. O candomblé reúne muitos aspectos de religiões e tradições do povo yorubá, que habitava o reino de Oyó. Até o acarajé é originário dessa região da África. As ligações culturais e econômicas eram tantas que o Daomé chegou a ter uma embaixada em Salvador no século XVIII – os portugueses exploraram tanto a região que a batizaram de ???Costa dos Escravos???.

A presença da embaixada também é retrato da riqueza e poder desses reinos. ???Esse é o principal mérito de A Mulher Rei: sair dessa representação que a maioria das pessoas imagina, e a própria Hollywood costuma retratar, de que na África viviam apenas tribos primitivas. Não era assim. Tinham reinos com uma alta organização política. Com palácios, muros, burocracia??????, exalta o professor Carlos.
 

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Carlos da Silva Júnior é especialista na história do Golfo do Benin (Foto: Marina Silva / CORREIO)

O problema é que grande parte dessa riqueza vinha do tráfico de seres humanos. O comércio de vidas ajudava a decorar de ouro os palácios, mas também acirrava as batalhas entre os reinos da região. O próprio Daomé foi fundado por mercenários que buscavam controlar a relação com os europeus. Citado no filme, o tributo pago ao reino de Oyó também possuía ligação com essa prática.

???O aspecto mais problemático do filme, historicamente falando, é apresentar as guerreiras Agodjiês e o próprio rei Ghezo como libertadores e defensores do fim da escravidão. Não era assim. Além da questão de pintarem o Daomé como herói e os soldados de Oyó como estupradores. Não havia mocinhos nesses conflitos, cujos perdedores eram escravizados, traficados e até envolvidos em rituais de sacrifício humano???, explica a historiadora Ana Lúcia Araújo, professora da universidade de Howard, nos Estados Unidos.

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Pintura do Rei Ghezo (Foto: Reprodução)

Isso, no entanto, não significa que o filme seja mentiroso ou digno de desqualificação. A obra, estrelada por Viola Davis, é baseada em fatos reais, mas não documental. O filme dirigido por Gina Prince-Bythewood será exibido neste domingo (23), às 10h30, em quatro sessões de matinê, dubladas e legendadas, no Cine Metha – Glauber Rocha, com ingresso a R$ 4 (valor único).

Idealizadora da Mostra Itinerante de Cinemas Negros Mahomed Bamba, a cineasta e produtora executiva Daiane Rosário explica que os limites entre a fantasia e ficção em obras como A Mulher Rei devem ser pautados prioritariamente em não criar caricaturas e estereótipos de personagens africanos. 

Veja o trailer de A Mulher Rei:

A roteirista explica que o cinema é uma ferramenta de construção de imaginários, interlocução de identidades e serve, também, para pensar o lúdico como uma forma direta de comunicação. “Esse filme traz a mulher preta e retinta como essa referência de liderança. Isso é muito importante para a gente pensar em novas características de representação da memória preta, principalmente pensando  enquanto diáspora, com toda a carência de referências”, explica.

“O filme traz a mulher como um eixo principal de inspiração, resistência. Não acho que seja problemático não termos a narrativa fidedigna com o contexto histórico porque o filme traz a questão importante de positivar memórias”, avalia.

O Chachá
A preferência dos baianos em receber os escravizados provenientes dessa região se dava por três principais motivos: a proximidade geográfica, o fumo produzido pela Bahia que era apreciado pelo Daomé e a presença de Francisco Félix de Sousa, o Chachá.

Nascido em Salvador, ele migrou para a Costa do Benin no fim do século XVIII, onde, após auxiliar o golpe de estado que colocou o Rei Ghezo no poder, recebeu o título de Chachá e monopolizou o tráfico entre a Costa do Benin e as Américas, abastecendo, principalmente, os portos de Salvador e Havana, em Cuba.

Chachá é considerado o maior traficante da história e “chegou a ser um dos três homens mais ricos do mundo”, escreveu o historiador Carlos Haag em texto publicado pela Universidade de São Paulo (USP) em 2004.

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Francisco morreu em 1849 (Foto: Reprodução)

Até hoje, os Sousa, descendentes de Francisco, são figuras ricas e poderosas no Benin. A cama onde Chachá morreu é preservada e o palácio onde vivia com suas 53 mulheres, 80 filhos e mais de 12 mil escravos foi restaurado em 2006. O ex-presidente Lula foi até a África para participar da  reinauguração do espaço, hoje ponto turístico.

Francisco também empresta o nome para ruas e praças, sendo homenageado até em estátua na cidade de Ouidah, onde morava. ???A figura do Chachá é alvo de muita reflexão no Benin. Por um lado, os herdeiros defendem sua memória, enquanto muitos outros defendem o fim dessas homenagens por todas as tragédias que cometeu???, revela Carlos da Silva Júnior, que já visitou o país na costa oeste da África em algumas oportunidades.

Uma das supostas ???benfeitorias??? praticadas por Chachá seria a recepção de alguns líderes da Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador em 1835, na cidade de Ouidah. Segundo o clã dos Sousa, o patriarca teria dado terras e empregos aos negros exilados. No entanto, não há documentos históricos que comprovem essa informação.

Em outro continente
Ao desembarcarem no porto de Salvador, os daomeanos e yorubás, que aqui eram alcunhados com os termos jejê e nagô, respectivamente, eram vendidos aos novos senhores, que os levavam para diversas partes da antiga província. As plantações de cana-de-açúcar no Recôncavo e as minas na região da cidade de Rio de Contas representavam os principais fluxos rumo ao interior do estado.

Já os que permaneciam na capital se dedicavam principalmente às tarefas de ganho. Ou seja: eram obrigados por seus senhores a carregarem mercadorias, trabalharem em comércios ou nas ruas. Surge daí o termo ???ganhadeira???, por exemplo.

Pouco após colocarem o pés em outro continente, os africanos eram batizados forçadamente no catolicismo. No entanto, quando reunidos, mantinham costumes e tradições de sua terra natal. A religião vodum, professada no Daomé, originou o candomblé jeje, enquanto o culto aos orixás, mais presente entre os yorubás de Oyó, tornou-se base do candomblé ketu.

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Pintura de Jean-Baptiste Debret retrata ganhadeiros e ganhadeiras em Salvador (Foto: Reprodução)

Na culinária, o acarajé é derivado do acará, bolinho de feijão tradicional do Benin. Já o abará foi importado da região que hoje fica no sudoeste da Nigéria. O amplo uso do azeite de dendê na preparação de pratos também tem ligação com esses povos.

Os idiomas yorubá e fon também seguiam sendo utilizados em ambientes privados e, com o tempo, se misturaram ao português. Palavras como ???axé??? e ???exu??? têm origem nessas línguas, por exemplo.

???Como o tráfico de escravizados era contínuo, sempre que novas levas vinham da África, os recém-chegados mantinham vivas as tradições entre quem estava na Bahia há mais tempo. Isso ajudou na perpetuação desses costumes???, explica o historiador Carlos da Silva Júnior.

Dentre os traços culturais apagados, os nomes e sobrenomes são os principais. Logo após o batismo forçado, os africanos eram rebatizados conforme o catolicismo, recebendo nomes como José, Maria, Joana e Manoel.

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Acará sendo preparado no Benin nos anos 50 (Foto: Pierre Verger / Reprodução)

Eles não recebiam sobrenomes em um primeiro momento, mas quando conseguiam alforria passavam a adotar termos católicos, como Maria da Conceição, ou faziam referência à antiga família de senhores, como João Monção (do senhor Monção) ou a questões geográficas, como Luís da Costa, vindo da Costa dos Escravos.

Mas os nomes originais não foram totalmente abolidos. Em ambientes privados, os escravizados costumavam se comunicar através de suas nomenclaturas originais, que também apareciam, ocasionalmente, em documentos oficiais, como testamentos.

Dá pra saber quem sou eu?
Os egressos da Costa da Mina, como também era chamada a região do Golfo da Guiné, eram  maioria entre os escravizados da Bahia mas não os únicos. A região,  hoje Angola, foi responsável por cerca de 30% dos africanos que chegaram a Salvador, enquanto outros lugares como Moçambique e Congo também merecem destaque, mas com participação menor.

Se algum baiano quiser descobrir de qual região da África os antepassados foram retirados, o processo é complexo, mas pode ser bem-sucedido. A melhor forma é partir do ancestral mais antigo conhecido, como um tataravô, por exemplo, e descobrir em qual bairro ele morou para, em seguida, saber a qual freguesia a localidade pertencia. 

Aí começa o trabalho de vasculhar documentos até encontrar antepassados ainda mais antigos e, eventualmente, a origem geográfica da linhagem. No entanto, parte significativa desses documentos relacionados à escravidão foram destruídos, em maioria de forma intencional.

E as Agodjiês?

Retratadas no filme, esse grupamento militar feminino existiu dentro do reino Daomé. As amazonas africanas, como costumam ser citadas na literatura histórica, têm os primeiros registros no século XVIII, tornando-se mais poderosas e influentes no século XIX.

???No início, elas eram apenas mulheres que trabalhavam no palácio. Com o tempo, começaram a ser treinadas e se tornaram uma unidade militar especializada. No entanto, elas não eram a única força bélica do Daomé, que também tinha homens em seu exército???, explica a historiadora Ana Lúcia Araújo.

E não eram todas as mulheres do exército que eram Agodjiês. Esse termo era reservado apenas a um batalhão. Entre os daomeanos, as amazonas eram chamadas de ???Mino???.

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Amazonas veteranas durante celebração em 1908 (Foto: Reprodução)

Citado no filme, o cargo de ???mulher rei??? também não existia. A função mais próxima a uma ???mulher rei??? era a de Kpojitô, que seria uma espécie de Rainha Mãe, que geralmente era ocupado pela mãe do rei corrente ou do anterior.

Também não existem referências documentais que essas amazonas africanas foram traficadas até a Bahia. No entanto, é provável que algumas tenham chegado a Salvador após serem capturadas em combates.

Casa do Benin preserva memória
Essa relação próxima entre Salvador e os povos da região do Golfo do Benin foi estudada e catalogada pelo fotógrafo francês Pierre Verger. Boa parte do acervo obtido por Verger durante suas idas a África estão em exposição na Casa do Benin.

Esse equipamento cultural, localizado no Pelourinho, abriga cerca de 150 peças em sua exposição permanente. Há máscaras, esculturas, instrumentos musicais e objetos ritualísticos, por exemplo.

???Quando um baiano vai à Casa do Benin, ele conhece sua própria história. Esse espaço, vital para a memória e preservação de nossa cultura negra, faz a ligação entre a África e a Bahia. ?? uma relação cultural tão próxima que as pessoas costumam se identificar bastante, observando que objetos utilizados no Benin, por exemplo, fazem parte de sua rotina aqui em Salvador, e elas nem faziam ideia da origem???, relata o produtor cultural Iago Tiago,  colaborador da Casa do Benin.

A Casa do Benin está aberta de terça a sábado, das 10 às 17h. O acesso é gratuito.

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