Nos primórdios da medicina, a relação médico-paciente era marcada por um paternalismo severo, onde qualquer decisão proferida pelo médico era tomada como verdade absoluta, não podendo o paciente exercer sua autonomia de vontade, caso esta fosse de encontro com a indicação do profissional.
A liberdade só pertencia a um lado da relação, não sendo aceito qualquer recusa ou desejo do paciente quando se entendia que tais escolhas seriam prejudiciais para a saúde daquele indivíduo. Em outras palavras, o desejo do paciente era suprimido em razão de uma concepção do Estado junto ao médico, que almejava a proteção da saúde sob qualquer hipótese.
Gradativamente, a medicina foi se desvencilhando de uma ética clássica, afastando de si, consequentemente, o seu paternalismo. Por conseguinte, a relação médico-paciente foi se modificando e, aos poucos, ambos os polos obtiveram uma maior autonomia, passando as decisões a serem tomadas em conjunto, ajustando-se a cada realidade concreta.
Nesse sentido, a recusa terapêutica nada mais é do que a materialização do princípio da autonomia do paciente, que ganhou tamanha relevância ao longo dos anos. E mais ainda, com o advento da Resolução do CFM de nº 2.232/2019, que trouxe conceituação e esclarecimentos através de suas normas éticas, dando um maior destaque a tal direito.
A citada Resolução traz claramente a possibilidade do direito de recusa à tratamento proposto ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão. Ou seja, o médico deve respeitar o direito à recusa terapêutica, desde que ele informe ao paciente os riscos e as consequências previsíveis da sua decisão, propondo outro tratamento, se disponível.
Nesse diapasão, cumpre ressaltar recente notícia publicada neste veículo, divulgando que o Ministério Público da Bahia quer que hospitais privados garantam o direito à saúde de pessoas praticantes da religião Testemunhas de Jeová, com a disposição de técnicas alternativas para aqueles que, por motivos religiosos, recusem tratamento terapêutico, sobretudo transfusão de sangue e hemoderivados.
Tal recomendação levou em consideração casos de pessoas, na região metropolitana de Salvador, que não aceitam transfusões por conta de suas crenças religiosas, bem como, de pacientes que tiveram o atendimento negado diante da recusa terapêutica.
Restou expresso, portanto, que não tipifica infração ética de qualquer natureza, inclusive omissiva, o acolhimento, pelo médico, da recusa terapêutica prevista nessa Resolução, tampouco caracteriza a omissão de socorro prevista no Código Penal. Em verdade, forçar o tratamento ao paciente poderia caracterizar crime.
Todavia, é muito importante que haja uma atenção maior, principalmente nos casos em que o médico optar por não atender o paciente que recusou o tratamento – sim, é possível, salvo em situações de urgência e emergência e denomina-se direito a objeção de consciência – quando a instituição deve providenciar a continuidade do atendimento daquele paciente por outro profissional integrante da equipe.
Além disso, dentre as orientações da Resolução, tem-se que a manifestação da recusa pelo paciente deve se dar, preferencialmente, por escrito, em um termo personalizado, com o auxílio de um advogado especializado e na presença de duas testemunhas, devendo o médico registrar o fato detalhadamente no prontuário.
Outrossim, a Resolução prevê algumas situações que o médico pode negar a recusa terapêutica, como no caso de situações de risco relevante à saúde, que o paciente menor de idade ou de adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades mentais, independentemente de estarem representados ou assistidos por terceiros, além do caso de abuso de direito, em que a recusa ao tratamento coloca em risco a saúde de terceiros, à exemplo da gestante que se recusa a fazer cesárea de urgência, mesmo ciente da possibilidade de morte do feto.
Diante todo exposto, é possível notar a importância do médico de conhecer a fundo o que determina a minuciosa Resolução do CFM de nº 2.232/2019, para que, em casos de recusa terapêutica, esteja o mais prevenido possível, evitando o cometimento de qualquer infração ética, além de possível enfrentamento de litígio judicial.
De fato, não é uma situação nem um pouco fácil para o médico de lidar, por isso, temos dito, o auxílio de profissionais especializados em direito médico, conhecedores do Código de Ética Médica e demais normas do ordenamento jurídico, torna-se cada vez mais essencial para os profissionais de saúde.
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