Santa Bárbara: a festa de dois territórios

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Santa Bárbara é a mais territorial das festas. Todas as festas populares são territoriais, mas Santa Bárbara é a única que ao longo de sua história teve dois territórios, o que significa dois ambientes, dois públicos, duas estruturas, duas referências de templo católico. Mais territorial do que as outras. A festa da Conceição da Praia sempre teve a Conceição da Praia como seu território; a da Boa Viagem, a praia da Boa Viagem como o ponto alto dos festejos; a do Bonfim, o alto da Colina como referência; a do Rio Vermelho/Iemanjá, o espaço territorial da Mariquita e do Largo de Santana; a de Itapuã, as praias do balneário e armação das baleias, que um dia virou bairro; a de Nossa Senhora da Luz, enquanto existiu, as praias e entorno da Pituba.

A festa nasceu no território da cidade baixa, entre dois mercados: o de Santa Bárbara e o de São João, área de comércio de carnes, mariscos, peixe e cereais. Território das fateiras e dos peixeiros. Não há nenhum registro de origem, há ilações, supomos que a festa tenha surgido na segunda metade do século XIX em torno do Morgado de Santa Bárbara, e da capela de Santa Bárbara, o espaço litúrgico do morgado. O mercado popular surgiu com a decadência do Morgado, do lado de fora.

No Morgado, funcionavam dezenas de estabelecimentos comerciais, a exemplo da famosa loja O Barateiro; o Armazém Francês, onde se vendia desde vestidos para as mulheres, bretanhas francesas, meias de seda, até espingardas; e também uma tipografia, a Silva Serva, que imprimiu o primeiro jornal baiano. No estabelecimento se vendiam livros, e se pagava – e provavelmente recrutava – os escravos que construíram a Praça de São João, seguramente que por delegação do contratante, a Câmara Municipal. Vários receptadores de escravos tinham estabelecimentos comerciais no espaço. No Morgado e nos trapiches do entorno.

No fundo da capela de Santa Bárbara existiu o chamado Beco dos Barbeiros, onde negros libertos habilidosos praticavam sangrias e intermediavam a venda de sanguessugas para a prática da medicina e formavam bandas musicais, além de cortar o cabelo e aparar barba e bigodes. No final do século XIX, o Mercado de Santa Bárbara pegou fogo, e a capela foi destruída. O espaço territorial da festa continuou o mesmo, transferindo o culto católico para a Igreja do Corpo Santo, próxima da Praça Cayru. Os mercados de São João e de Santa Bárbara deixaram de existir, se consolidou o Mercado do Ouro, mas a festa não se fixou no entorno, foi transferida da cidade baixa para a cidade alta.

O novo território tinha como referência o Mercado de Santa Bárbara na Baixa dos Sapateiros e, no lado religioso, a Igreja do Passo e, mais tarde, a Igreja do Rosário dos Pretos, onde permaneceu. Na segunda metade do século XX, imigrantes espanhóis assumiram a organização da festa. Os bombeiros elegeram Santa Bárbara como sua padroeira, a corporação se incorporou aos festejos, na década de 1940, o quartel passou a ser ponto de parada na procissão da Santa, em 1950, e o Largo do Pelourinho, o ponto de partida e de retorno da procissão. Em tempos recentes, a festa foi repaginada e o culto ecumênico se consolidou na celebração litúrgica.

O público da festa do território original era formado basicamente por saveiristas, peixeiros, fateiras, comerciantes, barbeiros, estivadores e capoeiristas. O público do novo território é formado por comerciantes, feirantes, o povo de Santo de Umbanda e do Candomblé, moradores do Centro Histórico e, a partir da década de 1970, pela classe média. A festa ganhou um status que não teve por mais de um século, ignorada por quase todos os cronistas de festas populares, textuais e de imagens. Pierre Verger, por exemplo, fotografou todas as festas, menos a de Santa Bárbara.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras

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