Se o ataque aos três poderes em Brasília pretendia fragilizar a governabilidade de Lula, acabou a estilhaçar mais ainda a credibilidade do projeto bolsonarista. Para além disso, teve a capacidade de gerar consenso numa população que há muito se habituou a alimentar-se do que a divide.
O Presidente iniciou o mandato com uma base popular e política frágeis, refletindo a polarização calcificada que dilacera o país. Todavia, este acontecimento produziu uma disrupção social e institucional ao aproximar petistas e antipetistas (em que se incluem os eleitores moderados de direita que votaram em Bolsonaro). O ataque permitiu ao Presidente ampliar o espaço de diálogo com o sector que o não elegeu, mas que não é extremista.
Podemos dizer que o “8 de Janeiro” foi um tiro pela culatra que transformou o bolsonarismo no seu próprio alvo. A invasão falhou nos seus intentos políticos imediatos, mas, como nada se reduz a um só propósito, vale a pena perguntar: que outro tipo de objetivos teriam sido gizados para mobilizar aquelas almas, de telemóvel em riste e cara destapada, a entrarem desarmadas em edifícios vazios, num domingo, sem o suporte do exército?
Se o golpe político não resultou, o mediático foi um êxito. Ou seja, uma forma complementar de analisar aquele dia é vê-lo como um contra-evento mediático que os bolsonaristas impuseram à força como resposta ao evento mediático da tomada de posse de Lula (e o que ele representa), precisamente uma semana antes, no mesmo lugar e mais ou menos à mesma hora.
Tal como no domingo anterior, a invasão foi transmitida em direto pelas televisões e redes sociais. Sem interrupções, monopolizou a atenção de vastas audiências à medida que se desenrolava. O destaque concedido à excepcionalidade do ataque aos pilares da democracia equiparou-se à atenção internacional dada à cerimonia de Lula 3.0. Os dois acontecimentos foram pensados para a cobertura mediática e ambos teriam falhado se a não tivessem conseguido na escala alcançada.
A destruição ao vivo foi imprescindível para a inscrição deste evento traumático na memória coletiva. E, deste modo, o extremismo reconquistou a centralidade que se desvanecia
Dentro da sua lógica operativa, o dia 8 foi um trabalho de resgate da atenção coletiva através da ocupação literal e simbólica dos espaços de poder em Brasília. Assistimos a uma performance de destruição: como em qualquer ato performativo, o seu impacto é indissociável da visibilidade. A destruição ao vivo foi imprescindível para a inscrição deste evento traumático na memória coletiva. E, deste modo, o extremismo reconquistou a centralidade que se desvanecia.
Numa operação mediática simétrica, o evento-celebração da tomada de posse deu, assim, origem a um evento-destruição com o ataque aos três poderes – e este, por sua vez, a um outro: um evento-união. Se a nação de Lula subiu com ele a rampa do Planalto, personificada nos convidados que lhe colocaram a faixa presidencial, no domingo seguinte, após os distúrbios, Lula desceu a rampa com o país institucional. O Presidente e os detentores dos mais altos cargos no país foram juntos, a pé, do Planalto ao TSE. Com este gesto simbólico, e de novo ao vivo, pretendeu comunicar o resgate do espaço violado e mostrar que o poder está ocupado e não tem medo.
Se a nação de Lula subiu com ele a rampa do Planalto, personificada nos convidados que lhe colocaram a faixa presidencial, no domingo seguinte, após os distúrbios, Lula desceu a rampa com o país institucional
O ataque ampliou a base de apoio de Lula. Até quando, não sabemos: a probabilidade de o Presidente inflamar as hostes é elevada; por outro lado, Bolsonaro é um líder de massas que mantém muitos eleitores do seu lado (recordemos que, mesmo no pico da crise da pandemia, o seu índice de popularidade pouco baixou dos 20%).
O bolsonarismo radical vive numa realidade paralela, num ecossistema de desinformação em que o ódio é uma estratégia de comunicação usada para alimentar laços negativos e engajar o grupo em narrativas falsas. Uma das suas forças reside na velocidade com que reage nas redes com fake news, como as produzidas pós-ataque (entre outras, a ideia de que infiltrados petistas é que invadiram os edifícios e que o ginásio onde estão detidos é um campo de concentração) e que mostram como uma identidade estruturada na vitimização, perseguição e conspiração tem recursos ilimitados de sobrevivência.
Esta dissonância cognitiva colectiva alimenta uma mundividência que não tem compromissos com a verdade, nem com as suas próprias mentiras. Por isso, mesmo que factuais, as notícias da morte do bolsonarismo são manifestamente exageradas.
(Transcrito de PÚBLICO)

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