“Santo não se vende”: a mulher que ajudou a fundar campanha pelo patrimônio

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Ajoelhada aos pés do altar do Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia, na cidade da Região Metropolitana de BH, a servidora pública federal aposentada Luzia Vieira, hoje com 98 anos, nascida e criada na cidade tricentenária, faz suas orações e, depois, com um sorriso, parece voltar no tempo, enquanto admira os três anjos barrocos que sua memória ajudou a restituir ao rico ornamento do templo. “Santo não se vende. É um bem da Igreja, da comunidade”, afirma
Em 3 de agosto de 2003, ela foi destaque na edição do Estado de Minas ao afirmar, categoricamente, que pertenciam ao templo histórico os três anjos mostrados no catálogo de um leilão no Rio de Janeiro (RJ), com foto reproduzida no jornal em 25 de julho de 2003, na coluna da jornalista Anna Marina. Luzia deu entrevista também para a reportagem “História em ruínas”, publicada no mesmo dia 3 de agosto de 2003, que ampliava o assunto para construções em degradação e fazendas coloniais desmontadas para venda da madeira a outros estados.
Suas memórias foram fundamentais para determinar a origem dos anjos barrocos que eram então leiloados no Rio. “Eu me lembro bem, pois, quando criança participava das coroações de Nossa Senhora. Havia quatro anjos, mas eles não eram fixos. Só iam para o altar, como ornamentos, durante alguma comemoração. Depois, eram retirados e guardados”, testemunhou, na época.
 
 
Desaparecidas na década de 1950 do Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia, e, ao que tudo indica, vendidas a um colecionador residente na capital fluminense, as peças se tornaram alvo de ação ajuizada pela Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia, representada pela sua vice-presidente, Beatriz de Almeida Teixeira.

PERÍCIA

Na época, por determinação do juiz da 2ª Vara Cível Santa Luzia, Jair Eduardo Santana, o conjunto, que já estava na mira de um banco holandês para compra, foi excluído do leilão, em 12 de agosto de 2003, e entregue ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), então presidido pela arquiteta Vanessa Borges Brasileiro, para ser periciado.
A tarefa, a cargo da equipe da arquiteta Selma Miranda, mostrou que as peças eram mesmo do santuário, como assegurava Luzia Vieira. Os anjos foram reintegrados em 9 de agosto de 2004, cerca de um ano depois da reportagem do EM, ao acervo da igreja. Desde então, se tornaram símbolo da campanha pelo resgate do patrimônio em Minas.

EMBRIÃO

A primeira estrutura do MPMG para combate ao comércio ilícito de bens culturais, considerada um embrião da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC), foi criada em 4 de agosto de 2003, um dia depois da publicação da reportagem do EM sobre a dilapidação de peças da história mineira.
O Grupo Especial de Promotores de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural das Cidades Históricas de Minas Gerais, integrado por Fernando Galvão (coordenador), Marcos Paulo de Souza Miranda e Rodrigo Rojas, foi o pioneiro. Dois anos depois seria criada a CPPC, tendo à frente Souza Miranda, e em 2008, inaugurada a sede própria.
Atual coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, de Execução Penal, do Tribunal do Júri e da Auditoria Militar (Caocrim), Souza Miranda foi o titular da CPPC até 2016. Foi sucedido por Giselle Ribeiro de Oliveira (até 2020) e depois por Marcelo Maffra.

SUPERAÇÃO

Souza Miranda lembra dos obstáculos iniciais: “O começo dos trabalhos foi bastante difícil, em razão da abordagem de um tema que ainda não havia sido enfrentado, de maneira sistemática, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. As primeiras grandes apreensões que fizemos ocorreram em São Paulo, antigo nicho de receptação do patrimônio cultural de Minas Gerais”.
Segundo ele, a partir de então os furtos a igrejas mineiras caíram drasticamente, e antiquários e colecionadores começaram a adotar maiores cuidados em relação à aquisição das peças com origem no estado. “Ao fazer esse balanço, minha convicção sobre a necessidade de uma atuação integrada e participativa na defesa do patrimônio cultural do estado mais se fortalece. Valeu a pena lutar por isso”, constata.
Estima-se que mais da metade do patrimônio cultural mineiro tenha sido extraviado ao longo da história – o primeiro registro em igreja data de 5 de outubro de 1789, quando foram roubadas lâmpadas de Nossa Senhora do Terço, na Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em São João del-Rei, na Região do Campo das Vertente. O responsável foi preso e condenado.
Atualmente, apesar dos avanços na recuperação de peças, ainda existem milhares de bens culturais móveis de Minas desaparecidos. “A Coordenadoria de Patrimônio Cultural verificou, ao longo de sua atuação, que quanto antes o extravio for comunicado aos órgãos de proteção, maiores são as chances de recuperação. O MP acredita muito na parceria com integrantes das comunidades, que são as verdadeiras detentoras desses bens. A maior parte das denúncias que recebemos vem de pessoas afetadas pelo extravio de bens sacros e documentos históricos”, informa o promotor Marcelo Maffra.
Depoimento

Caminhos abertos

“Até hoje me impressiono com a quantidade de denúncias, operações especiais para apreensões de obras de arte e peças sacras, muitas das quais acompanhei como repórter, além de devoluções espontâneas e restituições de objetos de fé a comunidades, que me emocionaram demais. De forma especial, chama a atenção a conscientização da população sobre a preservação dos bens culturais, com fortalecimento da educação patrimonial. O ano de 2003 representou um despertar, tendo em vista a escala ascendente, até então, de furtos e roubos a igrejas, capelas, museus e outros monumentos de Minas. Desde então, o EM se mantém firme na defesa do patrimônio cultural mineiro. Não me esqueço de uma conversa com o então editor-assistente do caderno ‘Gerais’, Anibal Penna, às vésperas da publicação da reportagem ‘História em ruínas’, em 3 de agosto de 2003, denunciando a dilapidação do patrimônio mineiro – sequência de coluna publicada dias antes pela jornalista Anna Marina. ‘Vamos ver  uma nova Inconfidência’, previu Anibal, entusiasmado, sobre a cruzada pelo patrimônio de Minas, que não mais sairia do noticiário. Sei que há muito ainda a ser feito, mas o caminho, sem dúvida, foi aberto.”
Gustavo Werneck

PERDAS E GANHOS

Conheça cinco bens resgatados nos últimos 20 anos e outros ainda desaparecidos:

Uns de volta…

1) A imagem de Santo Onofre, do século 18, com 15,5 centímetros de altura, retornou a Oliveira, na Região Centro-Oeste de Minas, em 22 de agosto de 2019, 25 anos após ser furtada do Museu Diocesano Dom José Medeiros Leite (na época, foram levadas 35 peças). Foi devolvida espontaneamente, acompanhada de um bilhete, na sede da superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em São Paulo (SP).
2) Em 17 de novembro de 2021, o MPMG e a Promotoria de Justiça de Campanha, no Sul do estado, fizeram a devolução da imagem de Nossa Senhora da Apresentação, furtada havia 27 anos do Museu Regional do Sul de Minas, em Campanha. Em 7 de março de 1994, foram levadas 28 peças (quatro já recuperadas) do patrimônio sacro dos séculos 18 e 19. Alvo de denúncia, a peça foi encontrada em site de leilões de obras de arte.
3) Peças de outros estados também foram recuperadas e devolvidas. Em 14 de fevereiro de 2014, autoridades mineiras entregaram à diocese de Nova Friburgo (RJ) um crucifixo do século 18, apreendido pelo MPMG, depois que equipe da Coordenadoria das Promotorias de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC) identificou a peça anunciada em um site. O crucifixo havia sumido em 1950, durante obra em uma igreja, sendo fundamental para a identificação uma fotografia de 1945, quando ocorreu na cidade fluminense um congresso eucarístico regional.
4) Muitos fiéis cuidaram de peças de igrejas e as devolveram aos templos anos depois de elas serem retiradas para grandes obras. Em julho de 2021, terminou na Igreja Nossa Senhora do Carmo, em Belo Horizonte, um mistério que durava 50 anos, com a restituição de uma balaustrada de 15 metros de comprimento, em duas partes, esculpida em mármore de Carrara e usada, até o fim da década de 1960, para as pessoas se ajoelharem no momento comunhão.
5) Um dos exemplos mais surpreendentes nos 20 anos da campanha em Minas ocorreu na Matriz de São José da Lagoa, em Nova Era, na Região Central. Em janeiro de 2005, uma pessoa devolveu três crucifixos e uma imagem de São Sebastião, do século 18, furtados havia mais de 50 anos do templo. A entrega ocorreu durante confissão ao padre Eugênio Ferreira Lima. A identidade que quem devolveu as relíquias – e contou ao sacerdote que as peças pertenciam ao acervo da igreja – não foi revelada, por estar protegida segredo de confissão.

…outros à espera

1) Moradores de Serranos, no Sul de Minas, não perdem a esperança de ter de volta a imagem de Nossa Senhora do Bonsucesso, desaparecida há quase 30 anos. O furto, ocorrido em 14 de julho de 1994, deixou desolada a comunidade católica, que, a cada 8 de setembro, data consagrada à padroeira, renova seus votos de ter de volta seu bem mais precioso ao seguir, em procissão, a réplica da imagem. Procedente de Portugal, a peça original era esculpida em cedro com detalhes em ouro.
2) A esperança move também os moradores do distrito de Itatiaia, em Ouro Branco, na Região Central do estado. Com campanhas em redes sociais e participação em encontros ligados ao patrimônio, a Associação Sociocultural Os Bem-te-vis fortalece sua luta para ter de volta 18 peças do século 18 furtadas da Matriz Santo Antônio, em 16 de novembro de 1994. Do conjunto levado pelos ladrões, foram recuperados um crucifixo e imagens de São João Batista Menino e São Domingos Gusmão. Entre os itens ainda desaparecidos, está a imagem de Nossa Senhora do Rosário.
3) Completa, em setembro, meio século de um dos maiores ataques ao patrimônio de Minas. No dia 2 daquele mês, em 1973, ladrões levaram 17 peças sacras do museu localizado no subsolo da Basílica Nossa Senhora do Pilar, no Centro Histórico de Ouro Preto. Entre os objetos furtados, havia uma coleção formada por uma custódia, de 7 quilos, e três cálices de prata folheados a ouro, de origem portuguesa, usados no Triunfo Eucarístico, em 1733, a maior festa religiosa do Brasil colonial. Até hoje, não há sequer uma pista do valioso tesouro de Minas.
4) Duas vezes furtada, a imagem de Santana Mestra do distrito de Inhaí, a 45 quilômetros de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, é sempre um destaque das campanhas de resgate dos bens desaparecidos. Integrante do acervo da Igreja Matriz de Santana, a escultura do século 18 foi levada por ladrões, na primeira vez, em 1997. Os moradores não perdem a esperança de encontrar o objeto de fé, e renovam as preces a cada 26 de julho, data consagrada à avó de Jesus.
5) Em Ritápolis, na Região do Campo das Vertentes, foi criada uma cruzada para recuperar as imagens de São Sebastião e São Manuel, do século 18, furtadas em 27 de março de 1998 do Santuário Diocesano Santa Rita de Cássia. A imagem de São Sebastião pode ter pertencido à capela onde Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes(1746-1792), herói da Inconfidência Mineira (1788-1789), foi batizado. Na época, também foram furtadas, e posteriormente localizadas em Campinas (SP), as imagens de Santa Rita e São José, que voltaram aos altares. Já as outras continuam desaparecidas.

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