O jogador Endrick imitando um macaco é uma narrativa perigosa

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Começo sinalizando que este texto não é sobre linchamento, cancelamento ou até mesmo censura. É sobre narrativa.

Narrativa é poder. É através dela que contamos histórias e apontamos pontos de vista. Não está só na escrita. Está em tudo, principalmente em criação e execução de símbolos e signos. Mesmo em um jogo de futebol, pois há milhares de pessoas na arquibancada e milhões de pessoas assistindo pela televisão, rádio e streaming.

A primeira vez que ouvi sobre a história brasileira, contada de uma maneira crítica, além da universidade, foi em uma viagem a Portugal. Sim, na terra do colonizador. Eu estava em Belém, na cidade e distrito de Lisboa, quando uma professora diante do Monumento aos Descobrimentos ou Monumento aos Navegantes falou para seus alunos, que beiravam sete ou oito anos, algo próximo a “Não descobrimos nada. No Brasil, por exemplo, já existiam civilizações. Nós invadimos, uma história que não deveríamos nos orgulhar”.

Quando fui a Benin — antigo reino do Daomé, no porto de Ouidah, onde foi o segundo maior ponto de embarque de escravizados na história do tráfico de pessoas negras — eu pude ouvir e ler o ponto de vista de quem foi violentado, porque aqui no Brasil ainda lemos, como regra, a narrativa de quem violentou, explorou, sequestrou, estuprou… Aqui, parte da literatura e do audiovisual (principalmente as novelas) romantizam o período mais violento do país, colocando o colonizador como herói.

Hoje estamos no centro da história sendo contada por nós mesmos. Sempre escrevemos, mas era mais difícil publicar, montar espetáculos, encenar e roteirizar e dirigir filmes e novelas. Ainda está longe de ser o suficiente, para não comemorarmos com uma falsa simetria, mas negar o avanço é negar uma luta histórica. Aí, que mora a reflexão.

Você, jovem negro, apesar das suas batalhas individuais, as conquistas são coletivas. Porque no fundo a batalha também se estabeleceu assim. Você querendo ou não. Aquilo que você falar, escrever, publicar, dançar ou simplesmente a forma como comemorar o seu gol, haverá um desdobramento coletivo. Ao justificar o motivo de comemorar o gol imitando um macaco, o jogador Endrick disse: “O que importa é que estou feliz”. Não é só sobre ele, pois é exemplo para muitos.

Você deseja estabelecer uma nova narrativa ou reforçar uma velha?

Como sempre frisa a intelectual Deborah Medeiros, consultora de diversidade racial e gênero, adotar aquilo que poderá ser problemático em uma obra é uma questão de escolha. Por isso, frisei no início da reflexão, que não estabelece uma censura.

Se tem um grupo apontando que tal termo ou ação constitui algo problemático e/ou violento e você não dá escuta, está feita a sua escolha. Confesso que uma única pessoa já seria o suficiente para se repensar, imagina um grupo que você faz parte. Em uma postagem no Instagram do jogador Endrick, perceba quem de forma educada solicita que o jovem reveja a forma que comemora o gol e quem apoia.

O gesto de imitar um macaco após marcar um gol é profundamente problemático e tem raízes históricas no racismo e na desumanização de pessoas negras. Quando um jogador, especialmente um jovem negro, escolhe realizar esse gesto, ele está perpetuando estereótipos racistas que desumanizam e diminuem as pessoas negras.

Falarão: “Mas ele já justificou que é fã do Planeta dos Macacos e gosta do filme do King Kong”.

O futebol, assim como muitos outros esportes, tem sido um campo de batalha onde o racismo ainda persiste. Embora alguns progressos tenham sido feitos para combater o racismo no futebol, incidentes como esse mostram que ainda há muito trabalho a ser feito.

É importante entender que gestos como esse, mesmo sem intenção, não são apenas ofensivos para as pessoas negras, mas também perpetuam uma cultura de racismo que é prejudicial para a sociedade como um todo. Ao imitar um macaco, o jogador está reforçando estereótipos que foram usados historicamente para justificar a escravidão, a discriminação e a violência contra pessoas negras – os colocando como primitivos, desumanos e incapazes de intelectualidade.

O atacante Endrick está com um pé na Europa, para jogar no Real Madri. Clube de Futebol que joga o Vinícius Jr, que está esgotado com tantos casos de racismo – onde torcidas inteiras imitam macacos, da mesma forma que Endrick comemora os seus gols. Estarei daqui torcendo para que a história não se repita. Lembro bem o quanto o jogador Neymar escamoteava a existência do racismo e depois de ficar insustentável começou a falar sobre – mesmo de forma equivocada.

Jovens jogadores ou não, não acreditem no mito da democracia racial. Vão buscar um letramento racial, para fazerem ótimas escolhas.

INDICACÕES
Livro: Pele Negra, Máscaras Brancas, de Frantz Fanon.
Livro: Olhares Negros: Raça e Representação, de Bell Hooks
Redes sociais: Bárbara Carine – @uma_intelectual_diferentona

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