Novos autores não têm experiência de vida, diz Aguinaldo Silva

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MAURÍCIO MEIRELES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Foi como o dia em que Tieta voltou para Santana do Agreste. Cerca de um mês depois de ser desligado da Globo, em 2020, Aguinaldo Silva já estava de volta ao horário nobre: como a pandemia interrompera a gravação das novelas, a emissora precisou reprisar “Fina Estampa” e, mais tarde, “Império”.

Aguinaldo conta que, em seu contrato, uma cláusula dizia que ele receberia o salário de novo se suas novelas fossem reprisadas no horário nobre, enquanto estivessem no ar -algo impensável de acontecer em tempos normais. Foi assim que, logo depois de ser demitido, ela já estava recebendo outra vez da emissora.

Essa é uma das histórias que o autor narra em seu livro de memórias, “Meu Passado me Perdoa” (ed. Todavia), se deliciando com a vingancinha não planejada. Aguinaldo viu, na forma como seu desligamento foi conduzido, uma tentativa de humilhá-lo -algo que teria partido não da emissora, enfatiza ele, mas de pessoas que depois foram demitidas. “Minha praga pegou!”, ri ele.

A autobiografia, que Aguinaldo escreveu enquanto esteve isolado na pandemia, chega às livrarias nesta semana, mas já está disponível no estande da editora Todavia na Feira do Livro, em São Paulo.

No livro, ele relembra a juventude em Recife, marcada pelo amor à literatura e a homofobia que sofreu nas escolas por onde passou –mas também fala das aventuras com um grupo de meninos gays que se chamavam de “as arlequetes”.

Aguinaldo ainda rememora seus anos como jornalista, a vida na Lapa boêmia, no Rio de Janeiro, a prisão durante a ditadura e, depois, o sucesso com novelas como “Tieta”, “A Indomada” e “Senhora do Destino”.
O novelista hoje vive em Portugal, onde diz se sentir mais seguro, mas mantém um apartamento em São Paulo, onde recebeu o F5 para esta entrevista.

Na conversa, ele contou ter projetos com plataformas de streaming em diferentes fases de negociação -e revela ter uma novela pronta, sem dar detalhes. Aguinaldo diz ainda que faria uma novela bíblica, analisa as mudanças no mercado de roteiristas e discute a necessidade de dialogar com o público evangélico.

PERGUNTA – Você conta que recebeu uma ligação de um funcionário subalterno da Globo no dia 1º de janeiro de 2020, com a notícia de que seu contrato não seria renovado, e pediu para ele ligar no dia seguinte. No livro, você aponta uma tentativa de humilhá-lo na condução desse processo. Por quê?
AGUINALDO SILVA – Assinei o distrato à tarde, em Portugal, e uma hora depois já estava em toda a mídia do Brasil. Já estava sentindo [essa tentativa de humilhação] antes. Mas veja bem, não estou falando que isso partiu da Globo –partiu de pessoas que nem estão mais lá, porque foram demitidas também. Minha praga pegou! Pode publicar isso (risos).

P. – Poucos meses depois, com a pandemia, suas novelas foram reprisadas no horário nobre. Sentiu-se meio como Tieta voltando para Santana do Agreste?
AS – A sensação foi essa! Eu estava isolado neste apartamento quando saiu a primeira notícia [da reprise]. Para mim, foi ótimo. Meu contrato acabou no dia 29 de fevereiro de 2020 e, em abril, eu já estava gloriosamente de volta ao horário nobre.
Fui comunicado oficialmente de que meu contrato não seria renovado no dia 2 de fevereiro de 2020. Aliás, é muito engraçado, porque, depois de mim, falava-se de contratos que não eram renovados -eu fui o único que, nas palavras da mídia, foi demitido.
Logo depois, viajei de Portugal para Miami, e aí vim embora para São Paulo. Já havia aquela história de uma doença que tinha aparecido na China. Quando cheguei, em fevereiro, a coisa se agravou.
Trancado em casa, resolvi escrever esse livro de memórias. Logo depois, a Globo ficou sem novela e voltou a minha no horário nobre, o que foi uma coisa espantosa. Havia uma cláusula no meu contrato dizendo que, caso uma novela minha viesse a ser reprisada no horário nobre, eu ganharia o último salário durante o tempo em que ela estivesse no ar.
Sem falar no prazer de ter duas novelas reprisadas no horário nobre, o que é uma coisa inédita. Mas ficar trancado em casa não foi legal. Por isso comecei a escrever o livro. Fiquei ocupado com ele durante a pandemia e nos primeiros meses de desemprego, que são os mais problemáticos.
Mas confesso que sou viciado em escrever novela. Desde então, tenho pensado: fazer novela para onde? Se não tem a Globo, não tem ninguém. O SBT não faz novela, a não ser aquelas novelinhas. A Record faz novelas bíblicas…

P. – Você não faria uma novela bíblica?
AS – O Antigo Testamento é um manancial. Aliás, a Record tem feito só coisas do Antigo Testamento. Eu faria, sim, uma novela com aqueles profetas! Vi uma série sobre Moisés que é incrível.
Gosto do bordado que é escrever um novelão. Só que não tem onde eu escrever. Que outra coisa eu posso fazer independente de ter um produtor? Escrever livros. Acabei esse e já comecei outro, de ficção. E tenho vários projetos encaminhados, entregues ao streaming… Que aí é uma novela. Quando estão prestes a decidir algo, eles mudam de executivo, vem o outro e diz “eu quero isso, quero aquilo”.

P. – Então você tem projetos para streaming?
AS – Em fases diferentes de julgamentos e coisas assim. E tenho uma novela.

P. – Sendo produzida?
AS – Não, tem uma novela que apresentei, não vou dizer a quem, como, quando ou por quê. Mas tenho uma novela. Não quero ficar só como autor de livros. Quero fazer mais pelo menos umas duas novelas, seja onde for.
Há quem diga que o Brasil não tem uma literatura comercial forte porque nossos melhores autores comerciais foram escrever telenovelas.

P. – Mas, nas suas memórias, você conta que não conseguiu ter sucesso de público com seus livros. Por que acha que isso aconteceu?
AS – Depois que tive uma repercussão muito grande na TV, fui carimbado como autor de novelas. Os editores passaram a não me levar a sério, acharam que eu não era mais escritor. Esqueceram que eu tinha começado publicando livros com 16 anos.
No Brasil, os intelectuais acham que novela não é uma coisa séria. Mas, pelo menos aqui, a novela é muito mais séria do que a literatura, ela influencia muito mais o comportamento das pessoas. Não existe um livro no país que tenha causado uma mudança de comportamento. Mas, infelizmente, a novela não é levada a sério.

P. – Você tem um romance pouco conhecido, “98 Tiros de Audiência”, com personagens inspirados em figuras reais da TV, que causou uma sensação nos bastidores da Globo, porque as pessoas se reconheceram. Pode contar quem é quem nesse livro?
AS – Se eu oficializar, tomo um processo (risos). Não entendo como esse livro não vira uma série. A premissa é a seguinte: matam a estrela da novela e todo mundo, na novela e na vida real, é suspeito. É uma história perfeita de suspense.
Você não diz quem é quem, mas fala que um dos personagens, um autor de novela “egocêntrico, inseguro e neurótico”, é você mesmo.
Todos nós temos isso. De perto, ninguém é normal. Autor de novela, então, meu filho, sai de baixo! Você não mexe com 40 personagens durante seis meses à toa. Acho que sou uma pessoa complicadinha.

P. – Você teve uma briga pública de anos com Dias Gomes por causa de “Roque Santeiro”. Essas brigas entre autores eram comuns nos bastidores?
AS – Era divertido! Não sei se o Dias Gomes achava o mesmo. A coisa desceu para o terreno do insulto -ele dizia que eu era veado, eu dizia que ele usava dentadura. Tinha uma repórter da Folha que era terrível e contribuiu, ela era obcecada, de vez em quando ela me fazia falar algo.
Claro que competição tinha [entre os autores], era algo saudável. Todo mundo queria ser melhor. Não melhor que o outro, era ser o melhor de todos!

P. – Você se expõe bastante nesse livro, contando desde um episódio de assédio sexual na infância até um relacionamento conturbado com um rapaz. Por que escolheu trazer essas histórias a público?
AS – Sempre fui muito discreto em relação à minha vida romântica. Na minha época não era bem-vindo falar disso. Hoje em dia podemos falar abertamente. Os gays já têm filhos, adotam…
Tive um casamento que durou 18 anos, de a gente dormir na mesma cama –haja saco, né? E antes tive o Alemão, que foi um intervalo melodramático na minha vida. Uma paixão devastadora com a pessoa errada, porque era um psicopata. Depois, tive um casamento que durou sete anos.

P. – Você se considera vítima de um relacionamento abusivo?
AS – O Alemão tinha problemas sérios. Uma pessoa que tinha um fascínio pelo crime, por se tornar um grande bandido… Quando nos separamos, ele tinha duas balas no corpo que o médico achou melhor não tirar. Por aí, você vê.
Mas abusivo é quando a pessoa tenta se aproveitar de você, e ele não era assim. Ele era possessivo, achava que eu era dele e não podia deixar de ser. Foi um drama para eu me livrar disso.

P. – A nova geração de roteiristas se queixa das novas condições de trabalho nesse mercado. Vamos ver autores de TV com a projeção que a sua geração teve?
AS – Acho que não, essa festa acabou. Os autores da minha geração eram primeiro escritores, todos eles. O Gilberto Braga não chegou a escrever livros, mas era um leitor voraz. E eles tinham uma vida pessoal intensa. Eram ativistas políticos, pessoas da rua, jornalistas. Tinham uma experiência de vida e um senso de observação muito fortes.
Hoje os roteiristas são pessoas de classe média que não tiveram uma vida anterior, já se tornam autores de saída, com 18, 20 anos. As histórias que eles têm para contar não são saídas da realidade, porque todo grande escritor trabalha com o real e o transfigura.
Sei que é complicado dizer isso, parece que estou falando do doce que caiu do meu prato, mas as novelas não são mais a mesma coisa. Não sei se os novos autores vão prosperar, mas experiência de vida eles não têm. Não é um pecado ou um crime, mas eles não têm.

P. – Mas é uma questão de perfil dos autores e não das condições do mercado então?
AS – A situação do mercado é outra coisa. A Globo era muito pródiga. Ela não tinha por que pagar aqueles salários –não havia concorrência e ela mantinha as pessoas presas como na época áurea de Hollywood.
Nunca entendi bem por que os salários eram altíssimos. De todo modo, acho que essa época acabou. Agora, os salários são o que o mercado permite.
O próprio streaming é muito complicado, ainda não deslanchou. A Islândia tem menos de 400 mil pessoas e faz séries incríveis, estão todas aqui no streaming. O Brasil, que tem uma tradição de audiovisual, não consegue fazer nada que seja importante, depois desses anos todos.

P. – Qual série brasileira fez sucesso mundial?
AS – O público evangélico tem crescido nas últimas décadas no Brasil. Como as novelas podem dialogar com ele?
É complicado. Você tem vários públicos segmentados com os quais você também precisa conversar. Você não pode simplesmente abolir determinados temas da novela para satisfazer um público que é ultraconservador.
É complicado balancear o seu trabalho para atingir esse público, mas acho possível quando você fala do drama humano, que atinge todo mundo –todos passam pelos mesmos sofrimentos. Talvez agora as novelas estejam tentando ressaltar determinados dramas sem detrimento do drama geral, que é o da humanidade.

P. – O julgamento conservador que a audiência faz das novelas já existia antes da ascensão evangélica. Mas a sua geração de autores soube seduzir o público para introduzir temas polêmicos nas histórias. É possível fazer o mesmo com os evangélicos?
AS – Acho que sim. Engraçado você falar disso, porque essa novela que eu tenho e mencionei tem um núcleo evangélico. E pensei exatamente nisso, que está na hora de lidarmos com isso, porque no fundo temos certo preconceito.
Se são um terço da população brasileira, não podem ser excluídos. Temos que descobrir um jeito de tratar dos temas que eles consideram ofensivo sem chocá-los. É essa a tarefa do novelista, conquistar esse público sem perder o grande público que já tem.

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