No Rio de Janeiro, Herus foi alvo, não exceção

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Era uma noite festiva. No morro de Santo Amaro, a poucos passos do Catete, o céu se iluminava com as cores das bandeirinhas e o chão pulsava ao ritmo da quadrilha. Era junho, a temporada de milho verde, fogueiras e sanfonas. Crianças pulavam fogueiras, enquanto adultos dançavam e celebravam sua cultura, sua resistência e sua vida em comunidade.

Mas a alegria foi abruptamente interrompida. No lugar do barulho festivo dos fogos, ouviram-se os estampidos secos dos fuzis. “Era bala para todo lado. Só deu tempo de cair no chão”, recordou Cristiano Pereira de Santana, presidente da quadrilha Balão Dourado. O que começou como uma celebração transformou-se em um cenário de terror. Pessoas correndo, se jogando ao chão, protegendo crianças, tentando escapar do caos. No desespero, cinco foram feridas e Herus Guimarães Mendes, de apenas 24 anos, foi fatalmente atingido. Mais uma vida negra ceifada em nome de uma suposta operação policial para combater o crime, que, mais uma vez, criminaliza a favela.

O Bope, escalado para a ação, justificou sua presença alegando busca por criminosos armados. Mas como se pode legitimar o uso da força letal em uma festa comunitária, repleta de famílias e crianças? Que lógica é essa em um Estado que aponta fuzis para o arraial de São João?

A resposta não está nos documentos oficiais, mas na própria história do Brasil. A segurança pública, em sua essência, nunca foi projetada para proteger todos. Desde seus primórdios, seu objetivo tem sido o controle de alguns — e esses “alguns” têm cor, endereço e uma história de marginalização que remonta à escravidão. A polícia brasileira se originou como um aparato de repressão colonial, focada no controle, e não na prevenção. O inimigo, antes um quilombo, agora é a favela; antes era o escravizado que buscava liberdade, hoje é o jovem negro que apenas busca viver.

O que ocorreu em Santo Amaro vai além de uma falha operacional; é parte de um projeto que legitima a violência contra pessoas negras e expressões culturais não institucionalizadas. A festa junina, nesse contexto, transcende o mero evento — é uma afirmação de existência. É o povo celebrando sua vida, sua cultura, sua humanidade, e isso provoca desconforto. A favela dançando, resistindo e afirmando sua dignidade é um ato raro e poderoso.

Sob uma lente antropológica, essa invasão é um ataque simbólico à identidade coletiva. A quadrilha, a música, os enfeites formam um universo que reafirma a dignidade de um povo, rompido pela violência do Estado. A bala não apenas causa dor física; fere a memória, a cultura e as perspectivas de um futuro. A seletividade dessa violência é evidente: em áreas de classes médias, festas juninas ocorrem sem quaisquer interrupções. Não há helicópteros, não há fuzis, nem agentes de guerra. O crime, quando associado a endereços nobres, é tratado com uma gramática completamente diferente. A polícia e o Estado sabem disso.

O uso da força armada em territórios vulneráveis não é uma anomalia; é uma prática legitimada por séculos de racismo. Como diria Fanon, a violência colonial se torna tão natural que chega a ser banalizada. Para muitos que vivem nessa realidade, isso não é uma exceção — é o cotidiano. A sensação de que qualquer movimento pode ser o último perpetua a insegurança.

O governador pode ter exonerado comandantes e afastado agentes, mas ações superficiais não alteram a lógica subjacente. Segurança pública não é um exército; é um projeto de cuidado, de inteligência. Deveria ser a presença do Estado em educação, saúde, cultura e dignidade. É reconhecer que a favela tem direito à alegria, sem sirenes que cortem suas celebrações.

Herus Guimarães Mendes, um office-boy de 24 anos, deixou um filho de 2 anos. Ele foi ao arraial para dançar e perdeu a vida. Emanuel da Silva Félix, com apenas 16 anos, foi ferido, mas sobreviveu. O Brasil precisa urgentemente refletir: quantos jovens negros são necessários para que se reconheça que o verdadeiro inimigo não está na festa, mas na estrutura que perpetua essa matança?

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