Hoje no centro de um acirrado debate político por causa de sua política de preços, a Petrobras enfrenta um desafio ainda maior no longo prazo: como sobreviver ao fim da era do petróleo e responder à necessidade global de que as emissões associadas a combustíveis fósseis caiam rapidamente?
Enquanto várias grandes petrolíferas têm investido em energias renováveis e algumas já começam a cortar gradualmente sua produção de petróleo, a Petrobras vem diminuindo seus investimentos em fontes menos poluentes e planeja ampliar em 45% sua produção de óleo até 2026.
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Se a decisão de priorizar o petróleo tem se mostrado rentável num cenário em que a demanda global pelo combustível ainda é alta, especialistas afirmam à BBC que, no futuro, a estratégia pode custar caro não só à Petrobras mas também ao Brasil, que corre o risco de ver sua maior empresa definhar num planeta cada vez menos dependente de combustíveis fósseis.
Já a empresa diz que a transição global rumo a fontes renováveis não eliminará a demanda por petróleo, afirma que tem a missão de “transformar recursos brasileiros em riquezas” e que vem implantando ações para reduzir suas emissões (leia mais abaixo).
Fim da exploração de novos poços
Há um consenso entre cientistas de que, para frear o ritmo do aquecimento global, a humanidade precisa nos próximos anos reduzir drasticamente o uso de combustíveis fósseis, como petróleo e carvão.
Em 2021, a Agência Internacional de Energia (AIE) divulgou um estudo apontando que nenhuma nova reserva de petróleo e carvão poderia ser explorada a partir daquele ano para que o mundo evitasse os cenários mais catastróficos das mudanças climáticas, nos quais a temperatura global subiria mais do que 1,5°C.
Outro estudo, publicado na revista Nature em setembro de 2021, estimou que a produção global de petróleo e gás deveria cair 3% a cada ano até 2050 para limitar o aquecimento global a 1,5°C.
Parte dessa redução deve acontecer independentemente da vontade das petrolíferas, já que as energias renováveis têm ficado mais baratas e veículos elétricos tendem a ocupar uma parcela cada vez maior do setor automotivo.
Segundo a AIE, a demanda global de petróleo cairá dos atuais 90 milhões de barris por dia para 24 milhões de barris/dia em 2050.
Até lá, a tendência é que o petróleo seja cada vez menos empregado como fonte de energia, mas preserve alguns de seus usos como matéria-prima na indústria química – um peso muito inferior ao que teve nas últimas décadas como combustível essencial para a economia global.
Embora reconheça que o setor viverá um declínio, a Petrobrás pretende inaugurar novos poços e ampliar bastante sua produção de óleo nos próximos anos.
‘Pressa no pré-sal’
Em seu último plano quinquenal, divulgado em 2021, a empresa anunciou que pretende inaugurar 15 novas plataformas de petróleo até 2026, quando espera aumentar sua produção dos atuais 2,2 milhões de barris por dia para 3,2 milhões – uma alta de 45%.
Hoje a Petrobras é a quarta maior produtora de petróleo do mundo, segundo o portal de estatísticas Statista. As três primeiras são a saudita Saudi Aramco (9,2 milhões de barris/dia), a russa Rosneft (4,1 milhões) e a chinesa PetroChina (2,5 milhões).
Boa parte do aumento da produção da Petrobras se dará em poços na região do pré-sal, que já responde por 70% do óleo extraído pela companhia e abriga a maior parte das reservas ainda não exploradas no Brasil.
Em artigo publicado no site da Petrobrás em março de 2022, o então presidente da empresa, general Joaquim Silva e Luna, disse que a companhia corre para explorar o pré-sal antes que o mundo se volte a fontes menos poluentes.
No texto, Silva e Luna afirma que o planeta de fato precisa reduzir o consumo de combustíveis fósseis e priorizar energias renováveis para frear o aquecimento global.
Nesse cenário, segundo o general, cabe à Petrobras “não permitir que esses recursos repousem no fundo do mar enquanto aguardamos a chegada de uma nova era”.
“A certeza da transição leva a Petrobras a ter pressa no pré-sal”, afirmou Silva e Luna, que deve deixar o cargo oficialmente nesta quarta-feira (13/04) após embates com o governo federal em torno da política de preços da empresa.
Ao pisar no acelerador enquanto o mundo se vê obrigado a reduzir emissões, a Petrobras pode se ver alvo de crescentes contestações por seu papel no aquecimento global.
Em 2019, a empresa foi citada pela organização americana Climate Accountability Institute em um estudo sobre as 20 empresas que mais emitiram gases causadores do efeito estufa no mundo a partir de 1965. A conta considera as emissões ao longo de toda a cadeia, incluindo a queima dos combustíveis.
A Petrobras ficou em vigésimo lugar no ranking e tende a subir posições caso cumpra os planos de elevar a produção.
Emissões ‘operacionais’
Por ora, a resposta da empresa às mudanças climáticas se concentra em iniciativas para reduzir as emissões geradas na produção (mas não no consumo) de seu petróleo.
Em nota à BBC, a Petrobras diz que “planeja investir US$ 2,8 bilhões nos próximos cinco anos para redução e mitigação de emissões, incluindo a criação de um fundo de descarbonização de US$ 248 milhões para soluções de baixo carbono”.
Além disso, a empresa diz que os campos do pré-sal “estão entre os que produzem com menos emissão no mundo”.
“A emissão média de CO2 equivalente por barril produzido no mundo é 70% maior do que a emissão no pré-sal”, diz a empresa. “Como existirá demanda, se a Petrobras deixar de entregar seu barril com menor emissão, outro barril será entregue com maior emissão na operação, o que aumentaria a emissão global”, argumenta a companhia.
Uma das principais iniciativas climáticas da Petrobrás é a meta de cortar em 25% suas “emissões operacionais” até 2030, tendo como base o ano de 2015.
Porém, para Natalie Unterstell, diretora do Instituto Talanoa, focado em políticas públicas sobre o clima, a meta tem uma “pegadinha”.
Ela afirma que a Petrobras teve emissões excepcionalmente altas em 2015, e que, entre 2015 até 2021, as emissões da empresa já tinham caído 21% – dados confirmados pela própria companhia.
Com isso, a empresa teria até o fim da década para cortar suas emissões em mais quatro pontos percentuais – algo que Unterstell considera “bem pouco ambicioso”.
A analista afirma ainda que, até 2026, a Petrobras responderá pela instalação de quase a metade de todas as novas plataformas de petróleo no mundo.
“Eles estão indo para o tudo ou nada, apostando que vão tirar a última gota de petróleo que houver no poço”, diz a analista.
Já a Petrobras diz que adotou 2015 como referência porque naquele ano foi assinado o Acordo de Paris, pelo qual vários países se comprometeram a reduzir suas emissões. Ainda assim, a Petrobras diz que “de forma transparente apresenta números ano a ano, independente da data base do compromisso original”.
A empresa afirma ainda que “os cenários da companhia consideram a transição energética em curso, o que levará, em longo prazo, a uma retração dos mercados globais de petróleo”.
Mas a Petrobras diz que o petróleo seguirá relevante e que “as diferentes fontes de energia irão coexistir no futuro, renováveis e não renováveis, sendo importante acelerar o desenvolvimento dos recursos brasileiros, transformando-os em riquezas”.
Neutralizar emissões
Apesar do foco no petróleo, a Petrobras diz adotar uma série de iniciativas para apoiar a “sustentabilidade do planeta”.
Em 2021, a empresa anunciou que pretende neutralizar suas emissões operacionais, o que será feito por meio da “redução da queima de gás em tocha, ganhos de eficiência energética e projetos de captura, uso e armazenamento geológico de CO2”.
Porém, diferentemente de outras petrolíferas, a empresa não definiu um prazo para alcançar a meta.
Outro ponto em que a estratégia da Petrobras destoa da de outras grandes concorrentes diz respeito a energias renováveis.
Nos últimos anos, a Petrobras vendeu suas participações em sociedades empresariais que administravam usinas eólicas, fábricas de biocombustíveis e hidrelétricas.
Em 2019, o então presidente da companhia, Roberto Castello Branco, disse que a Petrobras não investiria mais em renováveis “porque é um negócio que requer competências diferentes do negócio do petróleo e gás”.
No entanto, outras grandes petrolíferas têm ampliado os investimentos nessas fontes e anunciado metas climáticas que, ainda que consideradas insuficientes pelos analistas entrevistados, são vistas como mais ambiciosas e condizentes com as necessidades do planeta do que as da Petrobras.
“São empresas que estão buscando uma vida pós-petróleo, embora ainda não saibam direito como chegar lá. Mas existe o desejo”, diz o físico Roberto Kishinami, coordenador sênior do Instituto Clima e Sociedade.
A francesa Total, por exemplo, anunciou a meta de neutralizar as emissões operacionais até 2050 e ampliar em dez vezes sua produção de energia renovável até 2030, alcançando 100 gigawatts (GW) de capacidade com essas fontes.
A britânica BP pretende passar dos atuais 3,3GW de capacidade instalada de fontes renováveis para 50GW em 2050, e diz que reduzirá sua produção de combustíveis fósseis em 1 milhão de barris de óleo equivalente até 2030.
A anglo-holandesa Shell diz que cortará sua produção de petróleo entre 1% e 2% ao ano até 2030, quando também pretende neutralizar suas emissões.
Antes de sinalizar uma guinada na visão dessas empresas quanto às mudanças climáticas, as atitudes são interpretadas mais como concessões à pressão de consumidores, investidores e governos preocupados com o aquecimento global.
Em alguns países, ativistas têm recorrido até mesmo à Justiça para forçar as petrolíferas a melhorar suas metas.
A estratégia já teve sucesso na Holanda, onde, em 2021, uma corte determinou que a Shell cortasse suas emissões em 45% até 2030 tendo como base 2019.
Na ocasião, a petrolífera afirmou que a decisão judicial não representava uma mudança, mas sim uma “aceleração de nossa estratégia”.
Até mesmo na China, onde empresas costumam estar menos sujeitas a pressões da sociedade civil, as duas maiores estatais petrolíferas anunciaram prazos para atingir a neutralidade das emissões até 2050. E a saudita Saudi Aramco, maior petrolífera do mundo, se comprometeu a chegar à neutralidade até 2060.
Acionistas climáticos
Grupos de investidores também têm pressionado as grandes petrolíferas a fazer mais pela descarbonização do planeta.
Em 2021, acionistas favoráveis à agenda climática conseguiram eleger dois membros para o conselho de administração da Exxon, a maior empresa de petróleo dos EUA.
Também em 2021, o conselho de administração da Chevron, a segunda maior petrolífera americana, aprovou a proposta de um grupo de ativistas para que a empresa cortasse emissões.
Para Natalie Unterstell, diretora do Talanoa, é questão de tempo até que esses “acionistas ativistas” batam à porta da Petrobras.
“? um movimento que está crescendo muito no mundo e não vai tardar para chegar aqui”, avalia.
Orgulho e identidade nacional
Segundo Roberto Kishinami, do Instituto Clima e Sociedade, a história da Petrobras ajuda a explicar “várias limitações” que a empresa tem na agenda climática.
Ele afirma que a Petrobras foi por muito tempo (e ainda é, em menor grau) vista como “parte da identidade nacional” e como crucial para a soberania do país – fatores que ajudam a poupá-la de pressões sofridas por petrolíferas no exterior.
Mesmo após abrir seu capital na Bolsa de Nova York, em 2000, a companhia segue tendo a União como sua maior acionista e é vista por muitos brasileiros como uma empresa estatal, diz ele.
Kishinami afirma ainda que, embora tenha sido fundada nos anos 1953, a empresa só se tornou uma das maiores petrolíferas do mundo nos anos 1980, quando cientistas começavam a destacar o papel dos combustíveis fósseis nas mudanças do clima.
O físico diz que a “entrada tardia” da Petrobras nesse mercado acabou adiando um debate interno sobre como a empresa se prepararia para um futuro menos dependente do petróleo.
E com a descoberta de reservas gigantes no pré-sal, em 2006, a companhia dobrou a aposta no seu carro-chefe. Na época, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva dizia que o pré-sal seria um “passaporte para o futuro” do Brasil, pois permitiria ao país investir vultosos recursos na educação e no combate à pobreza.
Kishinami diz que, enquanto tirava cada vez mais petróleo do fundo do mar, a Petrobras “achava ingenuamente que a promoção de alguns programas de proteção ambiental, como o reflorestamento em manguezais, lhe daria créditos pela emissão de gases de efeito estufa”.
Mais recentemente, a empresa passou a apostar no discurso que sua produção de petróleo gera menos emissões do que a concorrência.
Para Kishinami, porém, “esse tipo de ferramenta é periférico”, já que o grosso das emissões não ocorre na produção, mas sim no consumo do combustível.
O físico afirma que, ainda que continue havendo demanda por petróleo nas próximas décadas, o mercado encolherá substancialmente – o que torna a estratégia da Petrobrás “muito arriscada”.
Ele diz ainda que a Petrobrás é “resultado de um investimento social muito grande, com técnicos e engenheiros formados em algumas das nossas melhores escolas, e com uma capacidade de trabalho e inovação que não podemos jogar fora”.
“Faz muita diferença para o Brasil se a Petrobrás vai à transição ou não. Ela tem um potencial humano muito grande que não pode ser perdido nem disperso”, afirma.
Programas paralisados
Para a engenheira Suzana Kahn Ribeiro, vice-diretora do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), a Petrobras já desenvolveu estudos promissores sobre fontes renováveis em outras épocas.
Uma das iniciativas, a cargo do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento da Petrobras (Cenpes), buscava produzir bioetanol por meio da ação de enzimas. Outro projeto visava gerar energia eólica em plataformas offshore, aproveitando tecnologias que a empresa já domina na produção de petróleo em alto-mar.
Mas ela afirma que as iniciativas foram paralisadas na década passada, quando a Petrobras lidava com dívidas crescentes e grande turbulência por conta de denúncias de corrupção. Desde então, a empresa vem se desfazendo não só de investimentos em renováveis, mas também de refinarias e outros braços operacionais, como a BR Distribuidora.
Para a professora, fazia sentido “segurar investimentos em outras áreas para ajeitar a casa”, mas, passada essa fase, a empresa “deveria estar voltada a pesquisar e atuar em novos negócios”.
Em nota à BBC, a Petrobras diz que “está avançando na análise de eventuais novos negócios que poderiam reduzir a exposição e a dependência das fontes fósseis e, ao mesmo tempo, que seriam rentáveis, garantindo a sustentabilidade da companhia no longo prazo”.
A empresa afirma ainda que estão em curso “projetos para a produção de uma nova geração de combustíveis, mais modernos e sustentáveis que os atuais”.
A Petrobras diz, no entanto, que seguirá “com foco estratégico em águas profundas e ultraprofundas, com ênfase no pré-sal, onde tem vantagens competitivas”.
Lucro recorde
Em 2018, após quatro anos seguidos de prejuízos, as contas da Petrobras voltaram a ficar no azul. E, em 2021, a empresa registrou um lucro recorde de R$ 106 bilhões – resultado que gerou o pagamento de R$ 11,6 bilhões em dividendos à União.
No mundo político, porém, é comum a crítica de que a empresa daria mais importância a seus acionistas do que à população – discurso que costuma ganhar força em tempos de alta nos combustíveis, como o atual.
Nas últimas semanas, tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto o ex-presidente Lula – ambos pré-candidatos à eleição presidencial deste ano – cobraram a empresa a dividir uma parcela maior de seus lucros com a sociedade.
Por outro lado, são raros entre políticos brasileiros questionamentos sobre a postura da Petrobras frente às mudanças climáticas.
Para Suzana Kahn Ribeiro, da Coppe/UFRJ, é possível adotar políticas que atenuem o impacto da inflação de combustíveis sobre os mais pobres, como o pagamento de vale-gás.
Mas ela diz que o cenário também exige políticas que reduzam a dependência do setor brasileiro de transportes por combustíveis fósseis, como a construção de ferrovias e criação de redes de abastecimento para veículos elétricos e caminhões movidos a hidrogênio.
E o futuro?
Os analistas entrevistados dizem que a próxima eleição presidencial pode ter grande influência nos caminhos que a Petrobras trilhará no futuro.
Eles dizem acreditar que, se Bolsonaro se reeleger, a empresa tende a manter as políticas atuais e resistir a uma abertura maior a fontes renováveis.
E uma vitória de Lula não necessariamente significaria grandes mudanças, afirmam.
Eles dizem que, passados 11 anos desde o fim de seu governo, Lula continua a exaltar o pré-sal e não costuma defender uma redução no consumo de petróleo.
Roberto Kishinami, do Instituto Clima e Sociedade, diz que um fato novo pode mudar a posição de Lula sobre o assunto.
Antes pouco interessados nesse debate, dirigentes sindicais da Petrobrás – com quem Lula mantém uma relação próxima – já começam a cobrar uma nova postura da empresa frente às mudanças climáticas, diz Kishinami.
Em agosto de 2021, a Federação ?nica dos Petroleiros (FUP) aprovou um documento no qual defende que a Petrobrás invista em fontes renováveis e contribua com a “transição energética”.
No texto, os sindicalistas dizem considerar “estratégico o retorno da atividade da Petrobrás na geração de energia por meio de usinas eólicas e solares, assim como o investimento em pesquisas para o desenvolvimento do hidrogênio verde”.
O documento foi entregue a Lula no fim de março, quando o ex-presidente participou de um evento com na sede da FUP sobre o futuro da Petrobras.
Ao discursar no evento, porém, Lula não comentou as políticas climáticas da empresa nem tratou do aquecimento global, ainda que tenha cobrado a empresa a buscar o desenvolvimento do Brasil em vez de focar exclusivamente no petróleo.
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