Já averbou seu divórcio, nêga? Não? Então, vá.

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Na manhã do dia nove de janeiro de 2009, depois de um tempão “morando juntos”, eu assinava o papel que substituiria minha certidão de nascimento, a partir dali. Era o meu casamento civil. O religioso viria em maio do mesmo ano, com toda pompa e circunstância, no Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro. Cerimônias lindas, ambas seguidas por festas deliciosas. Lembrei muito desses momentos, hoje, quando peguei, alguns anos depois da ordem judicial, a minha certidão de casamento com averbação de divórcio. �? o fim de um ciclo e eu nunca imaginei o quanto isso poderia me deixar feliz.

Você sabe do que estou falando? Se não, repare: quando a gente casa no civil, infelizmente deixa a certidão de nascimento no cartório. No lugar dela, recebe a de casamento que passa a cumprir o papel da anterior. Quando acontece o divórcio, ele tem que ser “averbado”, ou seja, precisa ser feita, na certidão de casamento, a anotação de que aquele matrimônio se encerrou e aí você segue, legalmente, em voo solo. Só que pra conseguir essa tal anotação é uma agonia danada. Podiam apenas pegar a certidão de casamento e devolver a de nascimento, né? Mas não é assim não. �? um saco.

Empurrei essa averbação com a barriga, por pura preguiça da burocracia. A “outra parte”, vulgo ex-marido, também não fez nada. Agora, forçada por uma situação, tive que resolver e o processo foi chato como previsto. Tudo bem, vida adulta. O fato surpresa é que, hoje, vim do cartório meio eufórica, andando com a certidão averbada na mão, olhando pra ela e me sentindo “inaugural”. Mas por quê? Se eu já estava divorciada há tantos anos? Se é “só um papel”? Por que eu tô quase apaixonada por aquele documento onde está escrito “fica averbado o divórcio do casal”?

Quando postei minha empolgação nas redes sociais, várias mulheres assumiram que também haviam deixado passar muitos anos entre o divórcio e a averbação. Algumas delas comentaram ter sentido o mesmo frenesi que senti hoje, quando, finalmente, também finalizaram os próprios processos. “Comemore!”, “minha mãe comemorou!”, “que leveza!”, além de muitos coraçõezinhos e curtidas, foram as reações. Que doido. Achei que tinha sido – com meu jeito de valorizar bobagens – exceção, ao dar importância a esse momento. Mas, não. E faz sentido.

A averbação é o último e definitivo passo do divórcio. �? fechar gestalt, como se diz em certa linha de psicoterapia. �? assumir, legalmente, de volta, a identidade não vinculada ao outro. �? ter escrito, naquele papel que assinamos – normalmente, num arroubo de romantismo e esperança – que aquela “empresa” faliu. Averbação de divórcio a gente faz sozinha, depois dos desencantos, das audiências, de tudo dito. Do trânsito em julgado. �? o registro e o anúncio do fim definitivo. Esse é o primeiro gesto jurídico individual “das partes”, quando a entidade “casal” é dissolvida.

Não é banal, descobri, na prática. �? uma materialização necessária que cada pessoa vai sentir da própria maneira. Do mesmo modo, cada uma vai ter seus próprios motivos para fazer logo ou “empurrar com a barriga” esse irreversível desvinculo. Tudo tem sua hora. Dia certo chega. O meu chegou e só hoje eu entendi os motivos do meu adiamento. Tem a preguiça da burocracia, claro. Mas nada é por uma coisa só. Nesta tarde, enquanto eu fazia minhas coisas, esse assunto permaneceu em plano de fundo, se elaborando, por horas a fio.

De vez em quando, eu olhava para a certidão que me chama de “cônjuge virago”, coisa que eu nem sabia que era e que, se soubesse desse nome horroroso, jamais gostaria de ser. Reli os três sobrenomes que acrescentei para ser �??mulherzinha uma vez na vida, ele tá te pedindo” como insistiu uma testemunha, na hora da decisão. Resignada eu disse “sim”. Porém, por mais apaixonada que me sentisse, eu tive uma rejeição tão grande a mudar meu nome, que esse, o “de casada”, só ficou na certidão de casamento e, depois, na de nascimento do meu filho. Nunca atualizei qualquer outro documento. Mesmo assim, me incomodava. Se arrependimento matasse, eu não estaria aqui.

Por fim – apesar de ter curtido as festas, adorado reunir os/as amigos/as, e amado o homem daquela época – achei aborrecido casar legalmente. Antítese de romantismo, domesticação de amor. Mas casei, né? Não discordei da ideia. Depois, descasei, tive uma porrada de namorados, mas nunca perdi uma oportunidade de dizer que já havia casado “no civil e no religioso”. Mais ainda, que permanecia, de algum modo, “casada”. Agora, surpreendida pela descoberta do meu apego à instituição “casamento”, saio da minha historinha pessoal pra dizer: é isso mesmo, ainda nos sentimos “mais” com a escritura de “posse” assinada pelo varão, mesmo que de um longínquo e empoeirado passado. Pelo menos em mim, o problema era esse e foi plenamente identificado. Aí, você faz a sua própria autoanálise.

O frenesi de hoje foi por ter sentido completude e não falta. Será que consigo explicar? Não era estar livre de “alguém”, já que o humano do outro lado é assunto resolvidíssimo, há uma eternidade. Foi me sentir livre do inusitado apego a certo status. Desse sentimento que eu não identificava, mas me fez manter uma pendência por tantos anos: o desejo, quase inconsciente, de permanecer na identidade de “mulher casada”. Esse tropeço na mediocridade. Pelo jeito, eu gostava de reclamar “preciso averbar meu divórcio” e nunca ir porque essa situação me fazia “mais respeitável”.

A empolgação com que recebi minha “certidão de solteira”, portanto, significa um monte de coisas. A mais importante delas, pra mim, é a lembrança de que sempre é tempo e há espaço para conquistar mais uma liberdade, por menor que pareça aos olhos incautos. Já averbou seu divórcio, nêga? Não? Então, vá. Porque é necessário, mas, principalmente, pra você ver como é massa! Agora, vou consertar meu nome (botar o de solteira) nos documentos de meu filho e tentar ter minha certidão de nascimento de volta. Mas aí já é outro papo. Assim como a decisão de – aconteça o que acontecer – nunca mais me casar. Há muitas outras formas de viver amor e se proteger nas questões legais. Todas elas me parecem mais interessantes. Para a minha vida, claro. Na sua, você é quem manda e decide o que faz.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo

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