Retrato das tragédias dentro de casa

Publicado em

Tempo estimado de leitura: 4 minutos

“Senhora, seu marido está em casa? Ele a ameaça com o quê?” Na ligação ruim, a atendente mal ouvia a resposta da denunciante, de Goiânia. “Uma arma? Uma faca?”, insistiu. Não, o agressor não estava perto nem tinha uma faca – o instrumento mais usado nos assassinatos em família -, mas possuía um revólver, que havia apontado para a cabeça da mulher na véspera.

ligue-180-para-acabar-com-a-violencia

Era segunda-feira, dia de maior movimento no Ligue 180, a central do governo federal para onde mulheres de todos os cantos do Brasil telefonam quando se veem acuadas pelo marido, namorado ou ex. Por que segunda? No fim de semana, os violentos promovem um verdadeiro inferno em casa. Alguns bebem, o que potencializa o temperamento irascível, e atacam a esposa. Nesse call center, que dá orientação para o combate à violência doméstica, no curto período das 9 horas às 9h25, o álcool foi citado em chamadas de Feira de Santana (BA), Jandira (SP), Santo Antônio (RN), Belém e Brasília. O resultado do plantão de 24 horas foi de 2 156 ligações, com dramas, relatos de espancamento e de ameaças verbais.

O número cresce quando a mídia noticia mais um assassinato – e isso lembra as mulheres em perigo de que elas devem reagir, embora denunciar não garanta a vida. Dia 7 de agosto passado, no balanço dos seis anos da Lei Maria da Penha, que protege vítimas e é considerada avançada, a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, reconheceu que esse instrumento ainda não foi capaz de conter a fúria: “�? necessário frear o aumento de casos e a crueldade com que eles acontecem, responsabilizar o agressor, criar condições para que a Segurança Pública atue nos flagrantes e a Justiça tenha rapidez nos julgamentos”.

O Brasil é o sétimo entre os países mais covardes. De 2000 a 2010, foram mortas 43 mil brasileiras – 68,8% no lar -, o que equivale ao triplo do registrado nos anos 1980 e 1990, segundo o Mapa da Violência 2012 – Homicídio de Mulheres no Brasil, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos e Instituto Sangari. A selvageria crescente cutucou o Congresso. Em fevereiro, horas após o assassinato a facadas da procuradora federal Ana Alice de Melo, oito senadoras pediram urgência na instalação de uma Comissão Parlamen-tar Mista de Inquérito (CPMI), suspeitando que a omissão das autoridades facilite a ação dos criminosos. “Temos indícios de que, mais uma vez, houve falhas nas medidas de proteção à vítima”, afirmaram as parlamentares em nota. De fato, Ana Alice havia registrado um boletim de ocorrência e solicitado à Justiça providências para manter o ex-marido à distância. Mas ele invadiu a casa, em um condomínio de luxo nas cercanias de Belo Horizonte, e a liquidou. A babá, apavorada, se trancou com os dois filhos do casal no banheiro. Mais tarde, o agressor se matou.

Nos chamados recebidos pelas 196 atendentes na central – elas se revezam em turnos de seis horas -, ouvem-se relatos recheados com dois, três, quatro boletins de ocorrência, os BOs. Uma gaúcha de 46 anos (o nome das usuárias é omitido para poupá-las), da região de Cruz Alta (RS), disse sobre o homem com quem vive: “Ele é um animal selvagem, me pega à força, quebra tudo. Vai me matar para ficar com a casa, que comprei sozinha. Preso em flagrante, ele foi solto e voltou. O último BO é de julho. Já procurei o quartel da PM e a assistência social. Fui à comarca de Bagé, pedi ajuda em Porto Alegre. Uma juíza mandou o agressor conversar comigo. Isso é o fim do mundo! Não consigo me livrar; alguém precisa tirar esse monstro daqui”. A atendente engoliu em seco, um tanto impotente. Ela explicou que um promotor do Ministério Público pode solicitar medidas protetivas ao juiz, que, nesse caso, suspenderia o porte de arma do algoz, determinaria o afastamento de casa e a distância dos lugares que ela frequenta. “Se ele não cumprir, terá a prisão preventiva decretada”, alertou a funcionária. A gaúcha confessou se sentir desamparada para prosseguir. A atendente, então, recomendou procurar um defensor público, que agiria como advogado. Mais um dilema: o Rio Grande do Sul conta com apenas sete Defensorias Públicas especializadas, segundo a central. A gaúcha está a 300 quilômetros da mais próxima. No país, as defensorias não passam de 60. Paraná, Santa Catarina e Goiás não têm nenhuma.

Na mira da CPMI

A deputada Jô Moraes (PCdoB-MG), presidenta da CPMI, que deve ser concluída em março, visitou dez estados e viu muitos problemas: “Ainda não se estabeleceu um protocolo para acompanhar as medidas tomadas entre polícia, Ministério Público e Justiça. Se um juiz determina o afastamento do agressor, quem fiscalizará o cumprimento disso?” Jô citou a morosidade da Justiça. “Em Minas Gerais, vimos duas Varas de Violência Doméstica, cada uma com um só juiz, nove servidores e 22 mil processos para resolver.” A demora, ressaltou ela, agrava a tensão nas tentativas de homicídio. “Uma mulher de Belo Horizonte, esfaqueada em 2010, teve a audiência marcada só para 2013. Tempo demais. Em agosto, o ex jogou o carro em cima dela”, disse Jô. Outro entrave são os juízes religiosos e crentes no casamento indissolúvel. Eles não dão ouvidos à mulher ou tratam o crime como conflito de família, propondo a conciliação no lugar de abrirem processo. O relatório da CPMI, responsabilidade da senadora Ana Rita (PT-ES), vai apontar retrocesso ou ineficácia em todo o país, situação que os inquéritos policiais mal-elaborados refletem. Enviados ao Judiciário com falta de informações, acabam arquivados. Na capital paulista, de 189 inquéritos, somente 39 viraram processo. Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfren­tamento à Violência contra as Mulheres, lembrou que, “no estado mais rico da nação, algumas delegacias estão sendo fechadas ou desviando o foco. Dez passaram a atender também velhos, crianças e adolescentes”. E faltam delegacias. “No Brasil, há apenas 380 especializadas, muitas sem pessoal treinado e viaturas.”

.

Que você achou desse assunto?

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

- Publicidade -

ASSUNTOS RELACIONADOS

O Prazer é Todo Meu: Luana Piovani estrela campanha de nova marca de perfumaria feminina do Boticário

Após quatro anos de pesquisa, o Boticário identificou que o território de prazer feminino ainda é cercado por muitos tabus e decidiu se apropriar deste tema a fim de criar um ambiente acolhedor e livre de paradigmas para que as mulheres vivam todas as...

Delicias da Semana Santa: Bacalhau Especial

A Semana Santa é uma tradição religiosa católica que celebra a Paixão, a Morte e a ressurreição de Jesus Cristo. O período se inicia no Domingo de Ramos, que relembra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, e termina com a ressurreição de Jesus,...