FLÁVIA MANTOVANI
S?O PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em algum lugar de Kiev, João Levi pode nascer a qualquer momento. Filho do casal de brasileiros Priscila e João Paulo Bogucki, o bebê foi gestado no útero de uma ucraniana, que agora aguarda em um abrigo antibombas a chegada do parto, previsto para o próximo dia 23.
Por suas leis favoráveis e preços acessíveis, a Ucrânia é muito procurada por estrangeiros que buscam o processo de gestação de substituição ??a chamada barriga de aluguel, proibida em vários países, inclusive no Brasil. No início da guerra, em 24 de fevereiro, dois casais brasileiros que tinham ido buscar seus bebês em Kiev acabaram retidos pelos toques de recolher, até conseguirem escapar, no último dia 2.
Agora, outras famílias que esperam o nascimento de seus filhos terão que entrar no país para buscá-los em meio ao conflito. Segundo Priscila Bogucki, 39, essa foi a única alternativa apresentada pela clínica.
“Quando a guerra aconteceu, ela [a gestante] já estava em Kiev, na reta final da gravidez. Não dava para sair de lá”, afirma. “E sair de Kiev com um recém-nascido é muita responsabilidade, na clínica disseram que não podem entregar para qualquer pessoa, só para os pais.”
Newsletter Guerra na Ucrânia O boletim diário para você entender o que acontece na guerra entre Rússia e Ucrânia * Priscila e João Paulo, que moram em Vitória, no Espírito Santo, compraram passagens para viajarem até a Polônia no dia 26. O plano é atravessar a fronteira e chegar a Lviv, cidade que tem sido ponto de parada da maioria dos refugiados. De lá, o casal tentará ir até a capital, provavelmente de trem.
“A logística no momento é essa, mas tudo pode mudar”, conta Priscila. “Ficamos com medo, mas é o nosso sonho que está lá, não dá para esperar. Vai que o acesso a Kiev fecha de vez. Vai ser difícil, mas vai valer a pena.” Segundo ela, a embaixada brasileira, que neste momento funciona em Lviv, irá ajudá-los.
O Itamaraty informou à Folha que auxiliou até agora cinco famílias brasileiras que saíram da Ucrânia com seus bebês recém-nascidos e que outras duas deverão fazer o mesmo até o fim de março. De acordo com o ministério, foram flexibilizados alguns requisitos para o registro de nascimento e a emissão de documentos de viagem aos recém-nascidos, “em caráter excepcional e dada a gravidade da situação”.
“O escritório consular do Brasil em Lviv tem organizado comboios regulares com destino à Polônia, por meio dos quais brasileiros e familiares têm logrado deixar a zona de conflito”, informou.
Antes de recorrer à barriga de aluguel, Priscila e o marido tinham feito quatro tentativas de fertilização in vitro, a primeira em 2017. Em março do ano passado, eles viajaram à Ucrânia para iniciar o tratamento.
O casal tem recebido atualizações sobre a gravidez por meio da clínica, que afirma que a gestante está em um prédio com outras mulheres na mesma situação, monitoradas por um médico. “Parece que a gente foi do céu ao inferno. Tivemos a alegria da gravidez, de chegar à reta final. A sensação já é de que essa reta final demora muito. Agora, com a guerra, parece que o tempo não passa.”
Em Minas Gerais, um casal que iniciou o tratamento pouco antes do início do conflito já se conformou em ter que esperar mais do que o previsto. J., que deu entrevista com a condição de não ser identificada, enviou três embriões para a Ucrânia há cerca de dois meses.
Ela já estava selecionando a gestante para o contrato, mas o processo foi suspenso. Os embriões do casal, duas meninas e um menino, estão em um bunker, conservados sob refrigeração, com geradores para garantir que não falte energia.
Com a intensificação dos bombardeios a Kiev e os hospitais obstétricos voltados para o atendimento de feridos de guerra, não tem sido fácil obter informações, afirma. Segundo Bruna Alves, diretora da operação brasileira da agência contratada por eles, o plano é transportar os embriões futuramente para outro país, onde o tratamento poderia ser retomado de maneira segura -ela cita a Geórgia como uma boa opção.
Dos 150 casais com processo em andamento na Ucrânia pela Tammuz Family, 35 são brasileiros. “Tivemos muitos pedidos dos pais para removermos os embriões da Ucrânia. Mas agora não é viável. ? um material muito sensível, não pode ser transportado de qualquer maneira.”
Por enquanto, a clínica está conseguindo trocar semanalmente o nitrogênio usado para a conservação, como é requerido. “No momento estão seguros. Mas é difícil saber como vai estar daqui a alguns dias.”
As gestantes contratadas pela Tammuz já foram levadas a outros países. A dificuldade, nesse caso, é o registro dos bebês, já que os cartórios ucranianos estão fechados, e a legislação muda de um país para o outro. “Mas isso dá para resolver”, diz Alves. “Graças a Deus não temos nenhum bebê em bunker.”
Casais encontram na internet ucranianas que gestaram seus bebês para oferecer ajuda “Artur foi levado. Tropas desembarcaram em nossa área. Estamos esperando o ataque.”
As notícias foram enviadas na última quarta-feira (16) via mensagens de texto por Maria, uma ucraniana de 34 anos, à brasileira Ludimila Molotievschi, 38. O marido dela, Artur, foi convocado para defender a cidade de Horishni Plavni, no centro do país, da ofensiva russa.
Ludimila escreve diariamente para Maria e diz que a considera uma madrinha de seus filhos -uma menina de dois anos e um bebê de três meses. Foi a ucraniana que carregou as duas crianças em seu útero, por meio de um tratamento de barriga de aluguel.
Após o início do conflito, Ludimila e outras cinco mães que passaram pelo mesmo tratamento criaram um grupo para oferecer ajuda às ucranianas que gestaram seus bebês.
Como as clínicas não costumam divulgar o contato dessas mulheres para as famílias, elas tiveram que ir atrás de algumas delas, partindo do nome, da cidade e da data de nascimento, citados no contrato.
“A dificuldade é que eram todos nomes muito comuns, e lá eles não usam tanto as redes sociais que a gente usa aqui”, afirma Ludimila. “Eu já tinha contato com a Maria porque a encontrei no Instagram há mais tempo. Mas, investigando, conseguimos achar as outras.”
Segundo ela, algumas famílias enviaram dinheiro para ajudar nas despesas e outras ofereceram suas casas no Brasil como abrigo. “Elas não pedem muito, a gente é que oferece. Tentamos ajudar ao menos emocionalmente. A maioria quer ficar na Ucrânia porque os maridos não podem sair”, diz Ludimila.
A brasileira, que antes de recorrer à gravidez de substituição tentou cinco fertilizações e perdeu dois bebês, foi à Ucrânia em janeiro, para buscar seu caçula, Rafael. A filha mais velha foi batizada de Maria.
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