Dizimando criaturas fascinantes

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Certa vez, o escritor russo Anton Tchékhov saiu para caçar com um conhecido. Assim ele relata o episódio, numa carta escrita em 1892: ???O pintor Levitan está passando uns dias no meu sítio. Ontem, ao entardecer, eu e ele fomos à zona de caça às galinholas. Levitan disparou e uma ave, ferida na asa, caiu num charco. Eu a levantei. Tinha um bico comprido, olhos grandes e pretos e uma plumagem bonita. Olhava para nós, espantada. O que podíamos fazer????

Tchékhov prossegue: ???Levitan franziu a testa, fechou os olhos e me suplicou, com voz trêmula: ???Por favor, esmague a cabeça dela com a coronha da espingarda???. Respondi que eu não era capaz. Os ombros dele não paravam de sacudir, estava nervoso, contraía o rosto e suplicava. A galinhola olhava para mim, espantada.Tive de obedecer a Levitan e matá-la. E, enquanto dois imbecis voltavam para casa e sentavam-se para jantar, havia uma criatura fascinante a menos no mundo???.

Esse trecho da carta de Tchékhov está incluído na excelente introdução da peça A Gaivota, publicada junto com outras obras célebres da dramaturgia do autor russo numa edição da Penguin Companhia. Segundo o texto, Tchékhov usaria o episódio amargo da galinhola como fonte de inspiração, trocando apenas os animais e mantendo a banalidade da morte desnecessária de um belo animal.

Está lá, ao final do segundo ato, a seguinte fala do personagem Trigórin, escritor, em conversa com a aspirante a atriz Nina: ????? que me veio uma ideia para um conto curto: uma jovem vive às margens de um lago desde a infância, como a senhora; ama o lago, como uma gaivota, e é feliz e livre, como uma gaivota. Mas de repente aparece um homem, ele a avista e, por pura falta do que fazer, ele a destrói???.

Tchékhov ao menos extraiu algo de sublime do ato terrível que cometeu. A pequena galinhola assustada, esmagada com o cano da coronha, deu origem a um trabalho estupendo, que estou lendo com prazer, tentando me familiarizar com aqueles nomes insólitos dos russos. Mas até que ponto a morte de um ser vivo vale uma obra? Até que ponto a nossa capacidade de destruir coisas belas justifica que ergamos outras igualmente belas?

Lembro do que escreveu Borges em Inferno, I, 32, aquela linda parábola sobre Dante na qual descreve o desespero mudo de um leopardo enjaulado, que ouve de Deus, num sonho, o significado da sua sina: ???Vives e morrerás nessa prisão, para que um homem que conheço te olhe um número determinado de vezes e não te esqueça e ponha tua figura e teu símbolo num poema, que tem seu preciso lugar na trama do universo. Sofres o cativeiro, mas terás dado uma palavra ao poema.???

Borges continua: ???Deus, no sonho, iluminou a rudeza do animal e este compreendeu as razões e aceitou esse destino, mas só houve nele, ao despertar, uma obscura resignação, uma valorosa ignorância, porque a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade de uma fera???.

Em sua genialidade, o mestre portenho confere grandeza a um ato de covardia: o encarceramento de uma criatura fascinante. Fazemos isso até hoje nos zoológicos, nos circos e mesmo em gaiolas penduradas na parede. Por que há em nós esse instinto primevo de predar pelo prazer de predar? Há algo mais cretino que a caça esportiva? Imbecis fortemente armados arrancando a vida de seres raros.

Era isso o que faziam os viajantes de trem nos Estados Unidos do século 19, ao atirar por diversão em bisões enormes que ocupavam pradarias a perder de vista no caminho do oeste, até ficarem quase extintos. ?? isso o que ainda fazem os caçadores de gorilas no Quênia, dizimando populações inteiras da espécie. ?? a nossa sina.

Dado todo esse histórico, por que ainda nos surpreendemos quando santuários riquíssimos em biodiversidade como o Pantanal e a Amazônia viram fogo ou pasto? ?? que talvez permaneça, pelo menos em alguns de nós, um desconforto, uma inquietação diante de tamanha estupidez. Uma nesga de humanismo que parece ter ficado para trás quando a pólvora ganhou o mundo e nos trouxe até esta terra devastada. ?? esse humanismo incipiente que talvez nos redima um dia.

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