Os dedos que pressionam os olhos com força, tentam em vão conter as lágrimas que escorrem pelo rosto de um pai amargurado. Enquanto recorda seu filho Geovane Mascarenhas, Jurandy Silva de Santana mal consegue completar uma frase dessa entrevista. A emoção toma conta, principalmente, quando fala da semelhança física do filho caçula com o primogênito, assassinado de forma brutal por policiais militares, em 2 de agosto de 2014. O mais novo hoje tem a mesma idade do irmão ao ser morto. ????? como se estivesse vendo ele em minha frente???, diz o pai, olhando firme para o horizonte pela janela da casa de sua mãe, na comunidade de Santa Mônica, onde Geovane passou a maior parte da curta vida.
Apesar das lágrimas, Jurandy mantém a mesma coragem – que se sobrepõe ao medo de retaliação -, de há oitos anos, quando iniciou a saga para enterrar Geovane. Foi ele quem encontrou o vídeo que liga um grupo de PMs à morte do filho, que foi decapitado, esquartejado e teve os restos mortais queimados, após abordagem na Calçada.
No ano passado, Jurandy perdeu também seu pai, mais um golpe no coração bastante sofrido. ???Ele ficou tão abalado com o que fizeram com Geovane, que teve depressão e morreu. Eles [os policiais] tiraram para sempre de mim as duas pessoas que eu amava. Vou ter medo de que agora, me diga????, questiona.
Toda a entrevista aconteceu no segundo andar da casa da avó de Geovane, em área que fica do lado oposto ao quarto que foi do rapaz. ???Era muito sofrimento. E a gente resolveu ir dando as coisas aos poucos???, conta ele, sobre os pertences do filho.
A luta de Jurandy, infelizmente, está longe de terminar. Para esse pai dilacerado, a expulsão da corporação e a prisão dos culpados, que hoje trabalham normalmente no serviço de rua de Salvador, vão além da punição pela barbárie. ?? também reparação do Estado pelo ato cometido pelos seus servidores. ???Meus netos já têm noção do que fizeram com o pai. O menor entra em pânico quando vê uma viatura???, diz a avô.
Geovane deixou dois filhos: uma menina, hoje com 9 anos; e um menino, de 8. Eles são criados pelas mães com a ajuda dos parentes. ???Agora mesmo, a mãe da mais velha perguntou se eu poderia contribuir para botar a menina em escola particular. Disse que ia ver, porque não tenho renda fixa???, conta Jurandy, que trabalha como pedreiro. Nessa conversa com o CORREIO, ele fala sobre ingressar com ação indenizatória contra o Estado e também sobre lembranças e ameaças ao longo da sua cruzada por justiça. Confira:
Quem é – Jurandy Silva de Santana tem 54 anos e trabalha como pedreiro e carpinteiro. Em 2014, seu filho mais velho, Geovane Mascarenhas, foi assassinado por policiais militares dentro da sede da Rondesp, no Lobato. Desde então, esse pai incan- sável pranteia o primogênito e se dedica a desafiar o sistema e a morosidade da Justiça; e a quebrar as leis do silêncio que imperam nas periferias, em busca de reparação para o crime. Ele tem ou- tros filhos. O caçula, a- tualmente, tem a mesma idade do irmão ao ser morto, 22 anos.
O que mudou nesses oito anos após a morte de Geovane?
Muita coisa, mas nada de positivo. Porque aquele filme [o documentário Sem Descanso, do cineasta francês Bernard Attal], aquele sofrimento todo, continua em nossa família. Perdi meu pai. Ele ficou depressivo depois da morte do neto. Foi ele quem criou. De bom, nada. Só angustia, tristeza???.
Os policiais vão a júri popular, mas até agora não tem data marcada. Como o senhor vê a situação?
Cada vez que a gente tem essas informações, sofre mais com tudo isso. Tenta tirar as coisas da mente, levar vida normal, trabalhando, cumprindo as suas obrigações, mas quando as pessoas puxam o assunto, fico triste. Eles [os PMs acusados] recorreram, foram para Brasília [Justiça Federal], mas até agora não tem nada concreto [quanto a data do julgamento]. Não tem uma definição, um prazo. ?? um sofrimento cada dia mais doloroso.
O senhor crê que eles vão sentar no banco dos réus?
A gente [a família de Geovane] acredita, tem a esperança de um dia ver os culpados não fazendo mais o que fizeram com o meu filho. Vai ser difícil … Se chegar esse dia, se eu ainda estiver vivo, ver, acompanhar, vai ser mais um sofrimento, mas se tiver de acontecer… A minha esperança é ver os culpados pagando pelo que fizeram.
Como é manter acesa a chama dessa luta por justiça?
No início, meu pensamento era só encontrar o meu filho, dar enterro digno a ele. Só que de lá para cá, muitas coisas aconteceram. Muito sofrimento. Muitos pais passaram pelo que passei, mas não era para isso acontecer. Não era para eu enterrar meu filho. O certo era meu filho me enterrar. Como a justiça está aí, quero ver a justiça acontecer. Eu não vou fazer justiça nunca, mas vou ver que a justiça foi feita.
O PAD [Processo Administrativo Disciplinar] já foi concluído e está nas mãos do comando-geral da PM para oficializar o posicionamento da corporação sobre o resultado da investigação da Corregedoria. O que o senhor tem a dizer sobre essa demora?
Por que ele [o comandante-geral da PM baiana, Paulo Coutinho], não deu seu parecer até agora? Falta de provas? ?? isso que a gente fica com um pé atrás. O que precisa para ele assinar? Fica a pergunta para ele dar a resposta. Isso é uma dor que ninguém imagina. Na minha cabeça, só eu sei o que passo, só eu sei no meu peito a dor que sinto. O Comando-Geral não me diz nada. Ninguém chega pra me dizer alguma coisa.
A morte de Geovane foi um crime brutal. O senhor acredita que em um caso desses, se não houver rapidez nos trâmites judiciais, pode abrir brecha para outros casos com crueldade semelhante?
O caso como aconteceu, que foi provado passo a passo toda a situação, se não for feita justiça com as provas que estão no processo, a gente vai esperar o que mais?
A defesa dos policiais alega que não há provas de que os sete PMs acusados cometeram o crime, mesmo com o Ministério Público tendo denunciado os agentes com base nas investigações da Polícia Civil. Além disso, o advogado dos acusados diz que os policiais estão depressivos, que as famílias deles estão arrasadas…
Até entendo que a defesa é para defender eles, mas tem a Justiça, que tem as provas do crime nas mãos e precisa fazer acontecer [o julgamento]. Pergunta para as famílias deles se morreu alguém da mesma forma que mataram meu filho? E vou mais além: faz a comparação de quem está sofrendo mais, se é minha mãe, que está viúva hoje e sem o neto que criava? Pergunta se eles estão sentindo a minha dor, que perdi um filho daquele jeito? Hoje, convivo com duas dores e foram eles [os policiais] que fizeram isso. Tiraram o meu filho e o meu pai de mim. E será que estão depressivos mesmo? Vi um deles trabalhando na rua, no Rio Vermelho. Parei para fazer um lanche e vi ele fardado.
Qual a sensação de encontrar um dos policiais acusados de matar o seu filho?
Eu não vou dizer medo, porque o que já fiz pelo meu filho até agora, não tenho medo de nada. Eu só fiz olhar para ele e ele olhou para mim e baixou a cabeça. Eu só entrego eles à justiça, que está aí para ser feita. Eu não quero mal a ninguém, porque quem faz o mal, paga aqui mesmo. A lei maior é a de Deus. Eu só digo uma coisa: esse Jurandy aqui e nenhum membro de minha família quer o mal de nenhum deles. Vingança só traz vingança, ódio e raiva. Se tiver que ser feita a justiça dos homens, será feita.
E o senhor já conseguiu perdoar os policiais?
Só quem perdoa é Deus. O que eu sinto não é ódio e nem raiva. ?? tristeza dentro do meu coração. O que fizeram com o meu filho, não é coisa de um ser humano. A covardia, a crueldade que fizeram, não é de uma pessoa… Depois que o caso foi divulgado pelo jornal [o CORREIO*, primeiro veículo a noticiar o desaparecimento de Geovane], algumas pessoas que moraram perto da base [da Rondesp, no Lobato] disseram que ouviram alguém urrando de dor. O que esses policiais fizeram com o meu filho podem ter feito com outras pessoas e podem estar continuando a fazer. Não sou eu quem vai julgar e nem perdoar. A maior justiça é D???aquele lá de cima. Aqui a gente faz, aqui a gente paga.
Quais as lembranças que o senhor tem de Geovane?
Ele foi criado com a minha mãe e pai. A vida dele era aqui [em Santa Mônica]. Mas me ligava, me chamava para almoçar, era aquele amor de primeiro filho. A gente se via quase todo final de semana. Todo o final de semana encontrava com ele, com exceção quando ele estava trabalhando comigo nas obras. Tinha um ???baba??? de domingo. O ???baba??? era em Valéria com os tios e amigos.
Dizem que o tempo é o melhor remédio para curardor. O senhor acredita nisso, sua dor diminuiu?
A dor está maior. Com o tempo, vai ficando mais forte. O tempo não está sendo a cura. Não sei se é porque estou chegando a uma certa idade e as lembranças estão vindo com mais frequências, passando um filme na cabeça.
Como a família e amigos encararam a morte drle?
Até hoje, o pessoal ainda comenta. Me perguntam sempre, quando ficam sabendo de outros casos parecidos. ??s vezes, quando vejo um vídeo ou as matérias do jornal, me pergunto: ???como consegui ser forte????. Foi Deus quem me guiou, passo a passo. Há oito anos, quando comecei a procurar por ele, uma pessoa me disse: ???Jurandy, se soubessem que você foi no local procurar seu filho, eles [os policias] já teriam dado fim em você.
O quarto de Geovane aqui nessa casa não é mais o mesmo. Como foi esse processo da família se desfazer das coisas dele?
Não foi fácil. Foi doloroso demais, porque essa casa aqui era onde ele vivia. Tudo aqui ainda lembra ele. Mas o quarto era onde ele passava mais tempo, onde gostava de ouvir música, conversar, era o mundo dele. Após a morte, fomos dando as coisas aos poucos. Sempre que alguém chegava aqui e precisava de uma roupa, de um sapato ou qualquer outra coisa que havia no quarto, a gente dava. Aos poucos, tudo foi doado. Hoje, quem dorme no quarto é um dos primos dele.
Seu filho foi assassinado com crueldade, como é lidar com isso?
Sim, foi muita barbaridade que fizeram com ele. A polícia é para proteger e não para fazer esse tipo de coisa. ?? a polícia fazendo o papel do criminoso. E quem é que vai fazer a segurança da população?
Nesses oito anos, o senhor sofreu algum tipo de ameaça ou passou por alguma situação que ficou com medo devido à presença de policiais?
Nunca fui ameaçado. Mas teve um dia que estava na Paralela [a avenida Luiz Vianna Filho], num domingo, no meu carro com a minha mulher indo à casa de um amigo, e passou uma viatura da Rondesp bem devagar. Eu passei na minha velocidade da via e aí, não sei o que houve, eles aceleraram na via deles e me acompanharam e olharam para mim. Eu reduzi e olhei para eles. Não sei se um deles estava mostrando quem eu era aos amigos. Acho que me reconheceram. Isso foi há uns quatro anos.
Quando alguém fala no nome de Geovane, o que vem à sua cabeça?
O amor que ele tinha por mim…. Hoje eu tenho … [Jurandy leva as mãos aos olhos e começa a chorar e a entrevista para por alguns minutos. Em seguida, ele retoma falando da semelhança entre o primogênito e o filho mais novo, hoje com 22 anos] …a fisionomia dele na minha frente quando vejo o caçula. Não é que eu goste mais desse filho do que dos outros. Eu gosto de todos, mas ele tem um negócio diferente. ?? porque quando olho para ele, vejo Geovane na minha frente. E ele tem um amor comigo, me abraça muito. Todo mundo acha que ele é a cópia de Geovane e onde eu vou ele vai atrás e me abraça… Não sei se é o espírito dele [de Geovane].
Em relação aos netos [filhos de Geovane], como está sendo a criação deles? A família já entrou com ação indenizatória contra o Estado pelos atos praticados pelos policiais?
As crianças estão com as mães. A mãe do menino é caixa de uma farmácia e a da menina faz bico de manicure. Então, por aí dá para ver que a gente vem ajudando também. A mãe da menina me pediu uma força para colocar a criança em uma escola particular, mas não dei a resposta ainda. Têm meses que ganho alguma coisa, mas tem outros que não. E eu sei que meus netos têm direito à indenização e vou lutar por eles. Eles já vão crescer sem o pai. Esse dinheiro vai servir para as despesas com comida, escola, mas também para pagar um psicólogo. Elas estão traumatizadas com esse caso todo. Mas para isso, é preciso que os policiais sejam punidos.
Duas perguntas para dona Crispina, a avó
Durante toda a entrevista de Jurandy, ele estava ao lado de sua mãe, Crispina Silva de Santana, 67 anos, a avó que cuidou de Geovane como se fosse um filho. Ela também falou do neto com a reportagem e relatou que, quando a tragédia se abateu sobre a família, só se tinha conhecimento de uma filha de Geovane, que na época da morte do pai tinha 1 aninho. Algum tempo depois, a família soube da existência de outro filho de Geovane com outra moça, um menino que, hoje, está com 8 anos.
Como foram esses oitos anos para a senhora, D. Crispina?
Até hoje tenho boas lembranças dele, que criei com muito amor e carinho. Só Deus mesmo para confortar a gente. [O marido] Ele ficou doente. Teve depressão. Ficou assim depois do que aconteceu. Não queria comer, só andava calado. Eles [o avô e Geovane] eram muito apegados. Ele [o neto] gostava de fazer churrasco aí na frente da casa e sempre o primeiro pedaço era do avô.
Como foi a descoberta de mais um bisneto, um segundo filho do seu neto Geovane?
A mãe estava grávida de sete meses quando tudo aconteceu. O menino é todo o pai, até nos gostos por comida. Gosta de churrasco e ovo, igualzinho a Geovane [Ela sorri um pouco recordando o neto]. Quando ele [o bisneto] passa perto de algum policial, me diz: ???ô, minha avó, não gosto de ver nenhum deles, porque nem conheci meu pai???. E eu digo: meu filho, não fique assim, já passou. Entregue a Deus.
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