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Longe do interior: médicos aumentam, mas especialistas estão concentrados na capital

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A lista de consultas anuais da professora aposentada Célia Pacheco, 64 anos, inclui visitas ao ginecologista, ao cardiologista e ao ortopedista. De tempos em tempos, precisa rever também o oftalmologista, ainda que numa frequência menor. Morando em Mairi, no Centro-Norte baiano, ela costuma pegar a estrada – geralmente em direção a Feira de Santana e outras cidades próximas – quando começa o período do checkup de rotina. 

Célia costuma optar pela viagem quando não se trata de nenhuma emergência, mas também não quer esperar muito pela consulta. “Tenho plano de saúde e aqui tem algumas clínicas que atendem particular. Pelo SUS (Sistema Único de Saúde), tem o hospital e dois postos de saúde, mas demora, porque tem que ir no dia da marcação e passar por um clínico. Como eu posso marcar pelo plano, vou em Feira”, explica.

A marcação é justamente para ter acesso aos médicos especialistas: ou seja, aqueles que, após a graduação em Medicina, fizeram residência médica em uma área ou prestaram uma prova de título de uma das 55 especialidades aceitas no Brasil. Em Mairi, onde a professora mora, a disputa por um horário com esses profissionais é muito maior do que em outras localidades, onde a oferta também é mais abundante.

Em todo o país, pouco mais de 62% dos médicos são especialistas, de acordo com o estudo Demografia Médica, lançado no mês passado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP). Na Bahia, esse percentual é ainda menor: a proporção é de 57,1% de especialistas contra 42,9% generalistas. Em comparação, nos Estados Unidos, quase 90% dos profissionais são especialistas. 

Mas o problema ainda maior, na avaliação de entidades médicas e pesquisadores, é a distribuição dos especialistas: mesmo hoje, eles estão concentrados nas capitais. Em Salvador, existem quase cinco médicos para cada mil habitantes. No interior do estado, a proporção é de apenas um para cada mil. 

“A oferta de médicos especialistas, assim como a oferta de médicos generalistas, segue padrão semelhante da desigualdade de distribuição já verificado em relação ao total de médicos no país”, diz a pesquisa. Isso começa ainda nas residências médicas – apenas três em cada dez residentes estão fora das capitais ou regiões metropolitanas. 

Ou seja: enquanto nos grandes municípios esse episódio é raro, nas cidades menores, não é incomum encontrar moradores com relatos parecidos com a professora Célia e que preferem viajar do que esperar até semanas por um especialista em sua cidade. 

O cenário de escassez de especialistas, contudo, também engloba a realidade oposta: na última década, o número de profissionais médicos cresceu em todo o Brasil. Os cursos de graduação tiveram a maior ampliação da história a partir de 2014, quando entrou em vigor a Lei Mais Médicos. 

Desde então, foram criadas quatro vezes mais vagas em cursos de medicina no país – a maioria delas no interior e em instituições particulares. A Bahia tem, hoje, 7,5% dessas vagas, ficando atrás apenas de São Paulo (22%), Minas Gerais (12%) e Rio de Janeiro (7,7%). Na Bahia, eram pouco mais de cinco vagas por mil habitantes em 2012. Dez anos depois, a razão tinha passado para 20 vagas de graduação por mil habitantes. 

Estrutura
Segundo o presidente do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), Otávio Marambaia, a distribuição desigual de vagas nos programas de residência se junta a problemas como a falta de estrutura, de boas condições de trabalho e de contratos com segurança jurídica. O resultado é uma dificuldade para atrair – e manter – médicos especialistas no interior. 

“A maioria das cidades onde estão sendo implantadas faculdade de medicina não têm infraestrutura necessária para o próprio curso de medicina e, obviamente, esses profissionais formados não vão encontrar as condições necessárias para exercer a medicina nesses locais. No caso do estado da Bahia, hoje, quase metade dos médicos já estão no interior do estado, independente de escolas de medicina ou não”, diz. 

O cenário ideal, de acordo com Marambaia, seria existir uma vaga de residência para cada vaga de estudante de Medicina. Ele admite, porém, que é impossível diante da infraestrutura hospitalar nos locais onde os programas seriam desenvolvidos. 

“(A consequência é que) tem lugares que não têm assistência médica adequada, não têm o número de profissionais adequados. Mas não é apenas de médicos, faltam enfermeiros, dentistas, falta toda a infraestrutura para que o médico ou a medicina possa ser exercida com qualidade”, critica. 

Origem 
No município de Guanambi, fica uma das residências recentes do interior do estado. O primeiro ano de ingresso do programa de Medicina da Família na cidade, organizado pela faculdade FIP Guanambi, foi em 2020. A instituição, como uma das autorizadas a criar o curso de Medicina após o Mais Médicos, tem a obrigação de implantar residências em áreas básicas de saúde. Atualmente, a faculdade está fazendo a reorganização das residências em Pediatria e Clínica Médica na cidade. 

De acordo com a médica de família Isnaya Araújo, supervisora da residência da FIP e professora do curso de Medicina, os dois programas existiram há alguns anos, mas como parte da estrutura do Hospital Regional de Guanambi. 

“Os residentes reclamavam que não era um curso bem estruturado. Teve uma denúncia e o de Pediatria acabou sendo extinto. O de Clínica Médica teve alguns editais, mas não teve inscritos”, conta. Para ter médicos especialistas em áreas como endocrinologia e reumatologia, por exemplo, é preciso antes fazer uma residência em Clínica Médica. “A gente sabe que tem problemas relacionados à preceptoria. Muitos colegas médicos não têm interesse na preceptoria, porque ela é voluntária”, acrescenta. 

Os preceptores são aqueles médicos especialistas na área do programa de residência e que, além de docentes, também atendem nos hospitais onde a formação acontece. Enquanto isso, o programa de Medicina de Família vem funcionando e já formou residentes. O problema, segundo Isnaya, é outro: a dificuldade de fixar os médicos no município. Neste caso, a situação esbarra em falta de incentivos de gestões municipais, uma vez que médicos de família são voltados ao atendimento no SUS.

A FIP ainda não teve turmas de médicos formados – isso só deve acontecer em 2024. Assim, os residentes têm perfis diversos: a maioria vem de cidades próximas a Guanambi, mas há quem tenha saído de Salvador ou mesmo do norte de Minas Gerais. Dos quatro médicos de família já formados no programa, apenas um ficou no município. 

“Eles não ficam porque teve um programa de provimento médico que foi o Médicos pelo Brasil. Eles passaram e foram atrás de um melhor salário. Esses programas acabam levando um pouco e Guanambi não teve vaga”, lembra. O Médicos pelo Brasil foi um programa do governo federal criado em 2019 para substituir o programa Mais Médicos. Este ano, porém, o Mais Médicos voltou a ser implementado pelo Ministério da Saúde. 

A única residente formada na cidade que continuou no município após o fim de seu programa é, hoje, também professora de Medicina na faculdade. Quando o profissional é natural da cidade, pode ser até mais fácil mantê-lo atuando no local. Esse foi o caso da própria Isnaya, que é de Guanambi. Ela estudou Medicina no Espírito Santo, onde também trabalhou por um período. 

“Quando soube que podia voltar para minha cidade natal já com intuito de docência e de implantação de residência, mandei meu currículo para cá e deu tudo certo. Sou muito entusiasta da Medicina de Família e queria muito que crescesse não só como especialidade, mas como necessidade”, diz ela, que defende que sejam feitos concursos para médicos com essa especialidade. 

Falta
O exemplo da Medicina de Família representa uma situação comum em outras áreas. Ainda que seja considerada uma das áreas básicas e de acesso direto nos programas de residência médica, a Bahia tem pouco mais de 350 médicos de família e comunidade atualmente. Para o presidente da Associação Bahiana de Medicina de Família e Comunidade (Abamefac), Deivis Freitas, é uma das provas da insuficiência de especialistas da área no estado. 

“Se fôssemos fazer um cálculo simplificado, poderíamos colocar que cada três mil pessoas deveriam ser cobertas por uma equipe de saúde da família com um médico ou médica de família. Se a Bahia tem aproximadamente 15 milhões de habitantes, precisaria de cinco mil equipes e, consequentemente, cinco MFCs”, calcula.

Fixar os médicos especialistas em saúde da família no SUS passa por desde a oferta de vagas com remuneração justa até uma carga horária adequada, equipes completas, recursos materiais e planos de carreira. Segundo Freitas, porém, quase nenhum desses aspectos é garantido pela maioria dos municípios. 

No caso da MFC, entre os que completam a residência estão os que decidem ficar no sus, os que decidem mudar para a prática privada ou mesmo mudar de especialidade. Para ele, as condições das vagas ofertas contribuem substancialmente para isso. 

“Os vínculos oferecidos são frágeis (PJs) e com remunerações sem adicionais pela titulação adquirida, fazendo com que o MFC titulado ganhe o mesmo que o recém-formado, o que termina por desestimular os profissionais especialistas da área”, explica. 

Estrutura
A falta de estrutura para médicos especialistas no interior é uma realidade comum em outras áreas. Essa é a avaliação da cirurgiã vascular Luiza Noya, 31, que se formou em Medicina em 2015, no Espírito Santo. Como sua família era de Ilhéus, ela decidiu passar um ano trabalhando lá. 

“Fui pensando que teria mais possibilidades de emprego no interior do que se ficasse em Vitória. Não achei essas oportunidades todas. Peguei um plantão em Itacaré e saí de lá porque rezava todos os dias pelo meu CRM, pela minha vida, porque não tinha nada para fazer pelos meus pacientes”, lembra. 

Foi quando ela decidiu vir para Salvador, no começo de 2017. Chegou a trabalhar por três anos até entrar na residência em cirurgia geral no Hospital Ana Nery. Já entre 2021 e 2022, fez outra residência em cirurgia vascular no Hospital Universitário Professor Edgar Santos, da Universidade Federal da Bahia. 

“Eu voltei para a Bahia pelo meu relacionamento e pelos meus pais, mas acabei vindo para Salvador por causa do meu namorado, que hoje é meu marido. Acho as residências do interior boas, principalmente na minha área cirúrgica, porque tem fluxo de cirurgias, mas acabei priorizando pela questão pessoal”, acrescenta Luiza. 

Com o fim da residência, ela continuou em Salvador pelas oportunidades de emprego. Ainda assim, tem o desejo de retornar a Ilhéus e trabalhar na região Sudoeste. Precisa, porém, pensar em uma nova logística e adequar à carreira também do marido. Ainda que trabalhe no SUS, ela ressalta que seu foco hoje não é viver dos plantões na rede pública – algo que comumente ocorre com médicos em começo de carreira ou que não fizeram residência.

“Agora, como especialista, vou voltar em outro momento da minha carreira. Não vejo oportunidades no SUS em Ilhéus e na maioria dos interiores porque as condições de trabalho oferecidas são ruins, tanto o pagamento quanto a estrutura física”, lamenta. 

A Comissão Estadual de Residência Médica, que organiza os programas, foi procurada pela reportagem, mas não respondeu até a publicação. 

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