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Perna Fróes foi uma multidão numa pessoa só

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Perna Fróes foi uma multidão numa pessoa só. Sua personalidade expansiva e comicamente exagerada fazia sua presença ser marcante. Sua trajetória como pianista e arranjador, com participação em grandes momentos da música brasileira, foi seguida por uma carreira de médico, às vezes com as duas se misturando. Antonio Renato Freire de Carvalho Fróes ganhou o apelido “Perna” dos colegas de sala, depois de quebrar a perna e ter que engessá-la. Mas a fama de perna-de-pau no futebol, que ele mesmo gostava de alardear, ajudou a fixar o apelido que adotou. Perna Fróes, para mim apenas Tio Perna, viveu o alvorecer de sua juventude no início dos anos 1960, período de vanguarda artística em Salvador. Numa rara jornada, ele e todos os seus amigos com quem iniciou junto a carreira conquistaram grande sucesso. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé viraram instituições da cultura brasileira. Orlando Senna, Emanoel Araujo, Capinam, Paulinho Boca de Cantor, Edy Star, Roberto Sant’Ana, Djalma Corrêa, Tutty Moreno, Tuzé de Abreu e os irmãos Perinho e Moacyr Albuquerque também tornaram-se nomes importantes das artes no Brasil. A casa de sua família, na Ladeira dos Aflitos, 59, foi ponto de encontro do grupo de futuros tropicalistas e doces bárbaros. No piano que foi de seu avô, o maestro Silvio Deolindo Fróes, e no qual madrugava tocando, ensaiou com Bethânia a música “Sol Negro”, que Caetano compôs para ela e Gal cantarem em contraponto, o que fizeram dois meses depois no espetáculo “Nós, por exemplo…”, que lançou o grupo em agosto de 1964. Também na juventude, foi organista na igreja de São Bento, emendando melodias de rock’n’roll em meio aos temas litúrgicos da missa, numa traquinagem que fazia ele e o amigo Raul Seixas se divertirem. Com a confiança de Bira (depois famoso por sua risada nos programas de Jô Soares), começou a se apresentar na noite de Salvador. Com Tom Zé, seu colega na Escola de Música da Universidade da Bahia, e com quem tinha uma personalidade parecida, fez parceria na composição dos sucessos “Menina, amanhã de manhã” e “Se o caso é chorar”. Por sua militância estudantil, Perna ganhou outro apelido, “Nikita”, numa referência ao presidente soviético Nikita Khrushchov, e chegou até a ser preso pela repressão. Mais tarde, em 1981, foi testemunha do Atentado do Riocentro, e fez um relato publicado no dia seguinte pelo jornal O Globo. Ele me contou que, quando estacionou o carro, achou estranho que estivesse tudo escuro. Foi quando um agente veio até ele e pediu que se retirasse dali. Perna retrucou dizendo que tinha que trabalhar, mas o homem foi mais incisivo: “Meu amigo, é melhor você ir embora porque isso aqui vai virar um inferno”. Logo em seguida, o Puma explodiu ao longe e pedaços chegaram perto dos dois. O plano dera errado, e o agente sumiu no breu. Perna acelerou e saiu dali. Gal Costa e banda no show do Riocentro No primeiro show de Gil e Caetano após a volta do exílio, em 1972, Perna Fróes estava ao piano. Gravou o disco “Expresso 2222”, com Gil, e em seguida o disco ao vivo de Caetano e Chico Buarque. Nas gravações do LP “Araçá Azul”, viveu uma experiência artística singular. “Íamos para o estúdio sem ter nenhuma noção do que a gente ia fazer. Criávamos tudo na hora”, me contou. “Back in Bahia” no primeiro show de Gil e Caetano na volta ao Brasil Continuou tocando com Caetano até a segunda metade dos anos 1970, quando assumiu a direção musical de Gal Costa nos discos “Gal Tropical” e “Aquarela do Brasil”, período de enorme sucesso da cantora. Foi de Perna a ideia de fazer o duelo entre a voz de Gal e a guitarra em “Meu nome é Gal”. “Meu nome é Gal no Festival de Montreux” Numa peregrinação pelos bares soteropolitanos, que terminou de madrugada em Amaralina, Perna explicou para Erasmo Carlos e Roberto Sant’Ana como tocavam cada um dos pianistas dos diferentes estilos da música brasileira. Depois da aula, o Tremendão, que acabara de o conhecer, decidiu na hora convidá-lo para gravar seu próximo LP, “1990 — Projeto Salva Terra!”, em 1974. Na dedicatória que escreveu na capa do disco, chamava-o de “perna e braço” e mandava beijos de fã. Musicalmente, Perna se dizia discípulo de Pierre Boulez, acreditando no acaso controlado. Reclamava da própria voz, mas conseguia cantar a dificílima “Oh! Darling”, dos Beatles. Na medicina, usava como máxima uma frase de Brecht: “Nada que é humano me dá nojo, exceto a violência”. Sua memória remetia à primeira vez que seus dedos tocaram nas teclas de um piano, pelas mãos da professora Nair Porto, mãe do amigo Mauricio, um dos homenageados por Caetano na canção “Gente”. Lembrava-se de ter visto, aos seis anos, seu pai chorando após ouvir no rádio a derrota do Brasil na final da Copa de 1950. O pai nunca mais quis acompanhar futebol, mas Perna tornou-se um grande rubro-negro, frequentando o Maracanã nos áureos tempos da Era Zico. No último dia 1º. de julho, antes do jogo Flamengo x Fortaleza, o telão do Maracanã exibiu seu nome durante o minuto de silêncio. Didático e enfático, fazia hilárias e exageradas comparações. Para nos explicar sobre a capacidade do corpo de absorver cálcio, recorria a uma analogia com o telescópio Hubble! Já um pequeno comprimido de vitamina C se transformava em “quatro caras de 38 na mão se revezando em turnos” para defender o sistema imunológico. Para acender a luz, mais comédia: “Eu não sou morcego pra enxergar no escuro”. Mas para varar as madrugadas, se declarava um morcego. No seu bordão, alguém cansado estava “mais quebrado que arroz de terceira”. E alguém muito mau era “o cão do quinto livro”. Em 2001, foi ao Programa do Jô integrando a banda do cantor Orlandivo. Quando Jô Soares descobriu que Perna era geriatra, chamou-o imediatamente para a entrevista, e ele roubou a cena, transformando o papo numa surreal conversa aleatória. Em 2020, no início da pandemia, trabalhando como geriatra, Perna contraiu Covid e foi internado. Atendeu minha ligação, no quarto do hospital, com uma tosse fortíssima e bradando um “eu não estou morrendo, não”, para ir direto ao ponto. Recebeu alta sem sobressaltos, mas as sequelas da doença debilitaram sua saúde nos últimos três anos. No dia 5 de junho, foi internado no hospital Casa, no Rio de Janeiro, com insuficiência renal. No dia 16, completou 79 anos e comemorou no hospital. No mesmo dia, postou numa rede social sobre seu estado de saúde. Na postagem, recebeu a solidariedade de Wagner Tiso, Paulinho Boca de Cantor, Ricardo Vilas, Tuzé de Abreu, Roberto Sant’Ana, Paulinho Lima, Rubão Sabino e Victor Biglione. Mas no sábado, 24, teve uma parada cardíaca e precisou ser entubado. Faleceu dois dias depois. Nos últimos meses, Tio Perna conversava comigo para passarmos a limpo momentos de sua carreira. Com a sua morte, lacunas permanecerão impreenchíveis para sempre. Às vezes, as conversas se davam numa tentativa minha de organizar o assunto. Em outras, sua intempestividade era mais funcional, como quando me ligou, no intervalo de seu plantão médico, para me contar sobre sua relação com Gil e Caetano. Perna dizia que já tinha visto milagres na medicina, e declamava versos de “Milagres do Povo”, de Caetano, para ilustrar. Acreditava numa força maior que rege o universo. A coragem para exercer a medicina, o que fez com determinação até o fim, mesmo em detrimento de uma carreira consolidada na música, teve inspiração em “Como nossos pais”, de Belchior, pois Perna também achava que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Perna Fróes deixa esposa, filhos, netos, sobrinhos, sobrinhos-netos, irmãos, muitos amigos e a sensação de que uma multidão, e não apenas uma pessoa, foi embora.

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