Projac versão Feiraguay: Conheça o bairro de Feira cujas ruas têm nome de novela

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À primeira vista, a placa anunciando que estamos na rua Avenida Brasil pode parecer um caso de crise de identidade, mas basta conhecimento novelístico e uma breve caminhada até o cruzamento com a rua Rei do Gado para decifrar o enigma. Trata-se de um conglomerado de ruas com nomes de novelas da Globo no meio de Feira de Santana. Tudo isso no coração de um bairro igualmente global: Gabriela.

No “Projac Feirense”, são mais de 20 ruas batizadas com nome de telenovelas. Dentre as homenageadas estão Anjo Mau, Bem Amado, Laços de Família, Salve Jorge e Torre de Babel. A curiosidade viralizou nas redes sociais recentemente após post da página Soteropobretano no Instagram.

Há também duas outras formas de se nomear as ruas no bairro Gabriela: citando times de futebol – Flamengo, Fluminense e Corinthians (escrito sem o h) aparecem no mapa – e as menos criativas ruas alfabéticas, que carregam apenas o nome das letras, indo de A a Z. Apenas a Paulo Freire quebra a tradição. “Ela era a Ninho de Serpente, mas a prefeitura veio e mudou”, denuncia, revoltado, o pedreiro Daniel Sousa dos Santos, 66, que mora na Corpo Dourado desde o fim dos anos 90.

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Daniel é um dos moradores mais antigos do bairro (Foto: Marina Silva / CORREIO)

Aliás, as ruas homenageiam a novela que faz sucesso naquele momento. Por isso, tal qual no caso das árvores, a idade das vias é denunciada pelos anéis de crescimento. Nas regiões mais antigas do bairro, novelas dos anos 70 como Sinhazinha e Marrom Glacê, enquanto as mais recentes mencionam Império e Flor do Caribe, por exemplo.

Com cravinho e canela
1.500 quilômetros separam o bairro feirense dos estúdios da Globo no Rio de Janeiro, e a discrepância entre a realidade em Gabriela e a ficção das telenovelas é tão grande quanto a distância física. 

Laços de Família, por exemplo, nem de longe lembra o Leblon da Manoel Carlos. As ‘Helenas’ de lá contemplam uma paisagem que se assemelha mais à de uma pequena cidade do interior baiano, com ruas de paralelepípedo e vizinhos sentados na porta de casa atentos a tudo que acontece nas redondezas.

Até os protagonistas destas tramas da vida real vieram, em sua maioria, de pequenas cidades em busca de uma sorte melhor na Princesinha do Sertão. Com orçamento limitado, os migrantes se aglomeraram nesse bairro da periferia feirense, situado do lado de fora do anel viário, e por lá mantiveram a pacacidade interiorana na agitada segunda maior cidade da Bahia e primeira cidade do interior nordestino em população.

“Por aqui não acontece quase nada. A única coisa que tem para fazer é comer água”, revela, enquanto dá um gole, o pedreiro Daniel Sousa, nascido na cidade de Esplanada.

O comentário pode parecer burlesco, mas ecoa na realidade. O bairro sofre com a ausência de asfaltamento, mas goza de uma alta concentração de bares por metro quadrado: há praticamente um em cada rua. 

E sempre com movimento, mesmo nas 10h da manhã de uma terça-feira. Até quem está trabalhando nesse horário dito comercial não faz muita questão de esconder seu real propósito. “Estou capinando esse terreno para ganhar um trocado e comprar uma cerveja mais tarde”, anuncia Elivaldo Cardoso, 52, enquanto observa seus amigos pedindo mais uma rodada no boteco em frente.

A situação chegou em um nível que uma moradora chegou a pendurar na porta de casa uma placa dizendo “por favor não sente no passeio para beber obrigado (sic)”. A ausência de pontuação no aviso, no entanto, dá ganho de causa a qualquer bebum mais atento que questione: “aí diz apenas que não pode beber ‘obrigado’, não fala nada sobre cerveja, cachaça e afins”.

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Apelo da moradora (Foto: Marina Silva / CORREIO)

A verdade é que em meio a uma ausência de equipamentos de lazer, os bares se transformam nos pontos de encontro dos moradores, que se reúnem por lá, inclusive, para assistir novela. 

Nas mesas de plástico rapidamente se descobre que, sim, há semelhanças entre o local e as novelas da Globo. “Naquela casa ali mora o Tufão”, aponta um senhor mais alcoolizado, indicando um possível caso de infidelidade amorosa na rua Avenida Brasil.

Outras referências são a forte presença de cavalos trafegando pela rua Rei do Gado e duas escolas: uma próxima à Anjo Mau que foi adaptada para “Anjo Redentor” a fim de dar um bom exemplo às crianças e a outra, mais clichê, chamada Carrossel – não por acaso, nome de uma telenovela infantil, baseada na versão mexicana Carrussel mas produzida pelo SBT.

Aliás, são uma escola municipal e uma estadual no bairro, que possui quase 20 mil habitantes, segundo dados do IBGE. No campo na saúde, são três unidades de saúde da família.

No saneamento básico, 7.848 casas são atendidas com serviço público de coleta e tratamento de esgoto, representando quase a totalidade dos domicílios do bairro.

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Encontro dos reis do gado com a escola Anjo Protetor na rua Indomada (Foto: Marina Silva / CORREIO) 

Que Gabriela é essa?
E o bairro, também é inspirado na novela homônima? Entre os moradores do bairro, o boato é que sim. Mas, segundo o servidor da secretaria de Planejamento, Gabriel Araújo, tudo não passa de uma grande coincidência.

“Esse conjunto habitacional começou a ser construído pela empresa de José Elmano Brito Portugal, que resolveu batizá-lo com o nome de uma das suas filhas: Gabriela. Só que a construção coincidiu com o período em que a novela estava no ar, por isso a confusão. Até um corretor se confundiu na época e sugeriu que as ruas também tivessem nomes de novela. Aí surgiu a tradição”, explica.

E o secretário de planejamento de Feira de Santana, Carlos Brito, garante não haver problema nenhum com os nomes diferenciados. “A única regra que temos é de que ruas, vias e avenidas não podem homenagear pessoas vivas, além de questões de bom senso, como palavrões. De resto, está liberado. Basta alguém sugerir o nome a um vereador ou ao próprio prefeito que levará a ideia para votação na Câmara e, se aprovada, entrará em vigor”, detalha. Em Salvador, o trâmite é similar.

Impacto cultural
O caso observado na Gabriela de Feira é único no Brasil. Até existem locais isolados, como a rua Rei do Gado em Joinville e a avenida Paraíso Tropical em Manaus, mas elas não estão rodeadas de outras localidades novelísticas. No entanto, isso não significa que o impacto cultural das telenovelas seja limitado.

A doutoranda Thaiane Machado, que estuda o consumo de novelas no grupo de pesquisa A-Tevê da Universidade Federal da Bahia (Ufba), conta que as telenovelas, principalmente as da TV Globo, são uma das principais formas de entretenimento consumidas no Brasil e, consequentemente, uma das mais influentes.

“Influenciam modas e comportamentos desde sempre. Dancin’ Days, nos anos 70, fez o número de boates aumentar bastante no Brasil, O Clone fez a maquiagem dos ‘olhos de gatinho’ se popularizar. Artistas como Lulu Santos, Djavan e Roupa Nova tiveram a carreira alavancada por trilhas. Incorporamos no nosso dia a dia palavras do indiano, marroquino, árabe, inglês e italiano. Algo parecido foi visto recentemente com Pantanal, adotando gírias e sotaque da novela”, elenca.

Os assuntos das tramas também repercutem em camadas políticas, como a Lei das Domésticas que foi aprovada, em 2012, sob forte influência de Cheias de Charme – folhetim que mostrava a amizade das empregadas domésticas Maria da Penha, Maria do Rosário e Maria Aparecida. Além de tópicos como tráfico de mulheres, transexualidade, esquizofrenia e câncer que começaram a ser mais debatidos após serem abordados nas tramas das novelas.

Com a popularização dos streamings, se discute que a repercussão das obras da TV Globo e outras emissoras percam importância. Mas, segundo a estudiosa, isso não deve ocorrer.

“Você não pode comparar a audiência de Roque Santeiro com a de Um Lugar ao Sol. Naquela época, tinham menos novelas no ar e, consequentemente, o público focava mais nelas. Atualmente existem muitas opções: a Globo aumentou o Vale a Pena Ver de Novo e criou uma faixa, substituindo Malhação; no Viva são quase 24 horas de novelas por dia; SBT aumentou o investimento em produções infanto-juvenis. Além de que, hoje, você não precisa necessariamente assistir o episódio no horário da televisão, podendo acompanhar depois via internet. Fato é que nunca se produziu tanta novela no Brasil como atualmente”, defende Thaiane Machado.

Todo esse impacto transforma as produção e distribuição de telenovelas em uma indústria multimilionária. Maior sucesso recente da emissora, por exemplo, Pantanal custou R$180 milhões aos cofres da TV Globo. Investimento revertido em uma arrecadação recorde de R$ 600 milhões com patrocínio, revelou o colunista Ricardo Feltrin, do Uol.

Além dos lucros com a venda de propagandas e merchandising na TV, a Globo também enche os cofres com o Globoplay. A plataforma de streaming cujo carro-chefe são as novelas chega a arrecadar R$ 150 milhões por mês.

Outra forma de arrecadação é a venda de títulos para o exterior. Apenas Avenida Brasil, por exemplo, foi exibida em 147 países. 

Ao lado de México e Turquia, o Brasil sempre foi um dos maiores exportadores de telenovelas. Recentemente a Coreia do Sul entrou nessa lista, conquistando, principalmente, fãs mais jovens.

Essa aceitação global das tramas brasileiras transforma as novelas em um dos principais divulgadores da cultura nacional no estrangeiro. Juliana Paes é uma estrela na Índia, enquanto Jorge Amado se tornou ainda mais conhecido internacionalmente graças aos títulos inspirados nas suas obras, como Gabriela.

‘Fábrica de sonhos’
Enquanto Gabriela é um bairro, o Projac pode ser considerado uma cidade. Localizada em Jagarepaguá, no Rio de Janeiro, a Central Globo de Produções (CGP) – nome oficial – concentra todas as produções de entretenimento da emissora.

Em uma área de 1,65 milhão de metros quadrados, sendo que um milhão é de vegetação nativa, o conglomerado abriga 32 unidades portáteis de produção para gravação das cenas; salas de controle de estúdio, com 26 câmeras; um prédio de arquivo de fitas automatizado e robotizado, com 250 mil cópias; dez estúdios acusticamente tratados, com 8 mil metros quadrados, e avançados recursos de iluminação.

Há quatro estúdios dedicados à produção e gravação de novelas. Por lá, quando uma trama acaba, os locais de gravação são desmontados rapidamente. Já a Gabriela Feirense é perene, guardando as tramas que homenageia para a posteridade.

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