A medicalização da vida

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Se você acredita que tem direito à felicidade, de preferência todo o tempo, ao sentir frustração, tristeza, angústia, decepção, medo e ansiedade, só pode olhar para esses sentimentos como se fossem uma anomalia. Ou seja: eles não lhe pertencem, estão onde não deveriam estar, precisam ser combatidos e eliminados. O que sempre pertenceu à condição humana passa a ser uma doença �?? e como doença deve ser tratado, em geral com medicamentos. Deixamos de interrogar os porquês e passamos a calar algo que, ao ser visto como patologia, deve ser �??curado�?�, porque não faz parte de nós. �? um tanto fascinante os caminhos pelos quais a felicidade vai deixando o plano das aspirações abstratas, da letra dos poetas, para ser tratada em consultório médico. E, ainda mais recentemente, como objeto do Direito e da Lei, inclusive com proposta de emenda constitucional.

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Acredito que poucos fenômenos são tão reveladores sobre a forma como olhamos para a condição humana em nosso tempo como o �??direito à felicidade�?�. Sem esquecer que este tema está relacionado a outros dois fenômenos atuais: a medicalização da vida e a judicialização dos sentimentos. Ou, dito de outro modo: tratar o que é do humano como patologia e dar aos juízes a arbitragem dos afetos.
�? importante �?? sempre é �?? ressaltar que obviamente existem doenças mentais e situações nas quais o uso de medicamentos é necessário e benéfico, desde que com acompanhamento rigoroso. O que se questiona aqui são os casos �?? infelizmente frequentes �?? de leviandade nos diagnósticos psiquiátricos e o consequente abuso no uso de medicamentos, que tem criado uma multidão de dependentes de drogas legais, cujas consequências só serão conhecidas nas próximas décadas. �? íntima a relação deste fenômeno com a crença da felicidade que assinala nosso tempo.
o aumento do sofrimento causado pelo imperativo da felicidade; a crescente demanda por um diagnóstico de transtorno mental, com a consequente receita de medicamentos; a transformação de momentos como luto, desilusão amorosa e rebeldia juvenil em doença; a dificuldade cada vez maior de compreender que sentimentos como tristeza, angústia, frustração, ansiedade e medo dizem algo importante sobre a vida, que deve ser escutado e não calado. Assim como a insônia e a falta de apetite nem sempre significam doença, mas um aviso de que é preciso reformular algo no cotidiano.
Na verdade, o que causa infelicidade às pessoas não mudou muito. Sofremos, em geral, pelo mesmo motivo apontado por Freud há quase 100 anos. Sofremos, na imensa maioria das vezes, do mal-estar resultante das nossas relações com os outros. Entretanto, percebo que mudou muito a forma como as pessoas lidam com esse mal-estar, com sua infelicidade cotidiana. Num passado não muito distante o profissional da saúde mental era, em geral, procurado para ajudar a pessoa a compreender seus mal-estares, decifrá-los. Hoje, um número cada vez mais crescente de pessoas nos procura com um único objetivo: se livrar dos mal-estares. Não querem saber nada sobre seus sofrimentos ou sobre sua infelicidade, não desejam decifrá-los ou interrogá-los. Querem apenas que o sofrimento e a infelicidade silenciem, e ainda demandam de nós uma resposta rápida, eficaz e, especialmente, que não lhe exija muito esforço. Estamos nos tornando uma geração de humanos que temem sua própria humanidade. Vivemos numa sociedade que pretende negar e rejeitar toda espécie de tragicidade que a condição humana carrega consigo.
A maioria das pessoas procura ser medicada �?? diagnosticada e medicada. Querem um nome para a sua doença e uma pílula milagrosa que resolva seu mal-estar. Mas o remédio não vai resolver seus conflitos familiares, não vai solucionar seus problemas financeiros, não vai dissolver uma culpa ou uma perda, assustam-se e ficam pensativas. Acho que as pessoas realmente acreditam que há um remédio que solucionará isso para elas. E, na verdade, ela não acreditam nisso por acaso. Elas acreditam porque há um discurso, extremamente forte e presente em nossa sociedade, alimentado principalmente pela indústria farmacêutica, que sustenta a ideia de que é possível encontrar na prateleira da farmácia um remédio para qualquer mal-estar que nos incomode. Este é um excelente exemplo, na saúde, de quando a oferta gera a demanda. Existe demanda por felicidade em pílula porque o multimilionário mercado farmacêutico oferta esse tipo de solução.

 

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