Justiça cobra dívida de moradores de condomínio que não existe em Camaçari

Publicado em

Tempo estimado de leitura: 4 minutos

Uma série de decisões do juizado de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador, está deixando moradores de um loteamento indignados. Juízes estão determinando o bloqueio e a penhora de bens para pagar dívidas condominiais, mesmo após uma decisão do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), um ofício da Procuradoria do Município e um parecer do Ministério Público reconhecerem a inexistência do condomínio.

O decreto que criou o Loteamento Vale da Landirana, em Barra do Jacuípe, foi assinado em 16 de julho de 1980 pelo então prefeito Humberto Henrique Garcia Ellery. O documento distribuiu 839 mil metros quadrados em lotes residenciais, comerciais e de turismo, além de área verde. Dois anos depois, João* comprou o primeiro lote no terreno.

“Não existia nada. Era um espaço vazio em que fomos construindo com o passar dos anos. Eu acabei comprando outros lotes que depois revendi. A região não tinha nenhuma infraestrutura. Alguns anos depois, os moradores se organizaram e resolveram cobrar uma taxa para cuidar do local, como se fosse um condomínio, e eu confesso que não vi problema”, contou.

Assim surgiu o Condomínio Planeta Água. No começo as coisas andaram bem, mas com o tempo João mudou de ideia. “Fui assaltado cinco vezes dentro do condomínio e quando fui questionar a falta de segurança, me disseram que esse era um problema da polícia. Parei de pagar a taxa”, disse.

O advogado Igor Freire representa uma moradora que está sendo processada. A mulher comprou um lote, mas ainda não fez construções no local. Em 2015, ela parou de pagar o suposto condomínio e, três anos depois, foi acionada judicialmente. Somada a dívida mais os encargos o valor devido é de quase R$ 29 mil, e a justiça determinou o bloqueio das contas dela para o pagamento.

“Existe uma Ação Civil Pública questionando a legalidade desse condomínio, um ofício da prefeitura e um parecer do Ministério Público reconhecendo que o local não é um condomínio, mas curiosamente o juizado de Camaçari tem passado por cima de tudo e dado prosseguimento a execução. Entrei com um mandado de segurança”, explicou.

Ela não foi a única. A administração do Planeta Água processou outros moradores que não pagaram a taxa, atualmente em R$ 350, e esse ano já foram autorizadas pela justiça três penhoras de bens em julho, agosto e dezembro. Antônio* descobriu que R$ 6 mil tinham sido penhorados da conta do falecido pai dele através de um amigo.

“O dinheiro foi retirado de uma conta que a gente nem sabia que meu pai tinha, por conta de um lote que ele já tinha vendido há anos, mas não fez a mudança de nome. A gente sequer foi intimado. Procuramos o juizado, levamos toda a documentação e a juíza que emitiu a ordem fez uma retratação mandando o condomínio devolver o dinheiro. Isso nunca aconteceu”, contou.

Disputa
A queda de braço envolvendo a tarifa condominial é antiga. Em novembro de 2016, moradores entraram com uma Ação Civil Pública questionando a legalidade do condomínio e a cobrança da tarifa. Em agosto de 2019, uma decisão de um juiz da Quinta Turma Recursal do TJBA reconheceu a ilegalidade.

“Diante de tantos argumentos e provas desfavoráveis ao condomínio autor, resta patentemente verificada a ilegalidade ativa do mesmo, posto que houve o desmembramento, há certidão da prefeitura informando a inexistência do condomínio nos moldes pretendidos pela parte autora, além de não ser o mesmo, nem ao menos responsável pela manutenção das vias internas ao loteamento. Evidenciada, portanto, a ilegalidade da parte autora”, diz a sentença.

Uma nova Ação Civil Pública foi iniciada em novembro do mesmo ano por outros moradores insatisfeitos com a cobrança. Em agosto de 2021, a Procuradoria de Camaçari emitiu um ofício ratificando que o local é um loteamento em área pública estabelecido por decreto, em 1980, e não pode ser considerado um condomínio.

Por conta desses documentos, em junho deste ano, outra penhora de bens em razão de supostas dívidas condominiais foi suspensa. Os moradores disseram que o caminhar dos processos têm dependido mais do juiz do que das provas. “Alguns juízes suspendem o processo ao ver a documentação e outros levam adiante. Como é que eu posso ser cobrado por uma dívida com um condomínio inexistente?”, desabafou.  

O Ministério Público e a Prefeitura de Camaçari foram procurados para comentar o caso, mas não se manifestaram. Já o Tribunal de Justiça da Bahia informou que não teve tempo hábil para elaborar uma resposta.

Outras ocorrências

O Condomínio Planeta Água tem registro de casos de violência e acusações de racismo. Em agosto do ano passado, uma corretora de imóveis que mora no loteamento procurou a polícia e registrou uma queixa contra funcionários do condomínio.

A filha dela, uma mulher negra de 28 anos, foi impedida de entrar no local, mesmo após a mãe, uma mulher branca, autorizar a entrada. Segundo as vítimas, os funcionários não acreditaram no parentesco. Na época, o síndico negou que eles tenham cometido racismo e disse que a entrada não foi autorizada porque a jovem estava sem documento de identidade.

Em 2015, um empresário de 69 anos foi assassinado durante uma briga entre ciganos dentro do loteamento. A vítima estava passando uns dias na casa de um amigo e tinha terminado de entrar no carro com a família quando os ciganos se desentenderam. Houve tiros, o empresário foi baleado e morreu.

A reportagem tentou contatar o síndico do Condomínio Planeta Água, primeiro, falando com um homem identificado como Laerte, que afirmou não estar mais no cargo. O ex-síndico então informou o contato do novo gestor do empreendimento, identificado como Oscar. Este, no entanto, se negou a comentar o caso e desmentiu ser o administrador do condomínio.   

Também procurada, a prefeitura de Camaçari informou à reportagem que não poderia se posicionar a tempo do fechamento desta matéria. 

*Usamos nomes fictícios para preservar a identidade dos moradores.

**Colaborou Emilly Oliveira.

Que você achou desse assunto?

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

- Publicidade -

ASSUNTOS RELACIONADOS

PM-BA monta planejamento especial para jogo entre Bahia e Atlético-MG

A Polícia Militar da Bahia, por meio do Batalhão Especializado de Policiamento em Eventos (Bepe), montou um planejamento especial envolvendo 489 policiais militares para oferecer mais segurança aos torcedores que irão assistir ao jogo entre Bahia e Atlético Mineiro, que acontece às 21h30 de quarta-feira (6), na Arena Fonte Nova, em Salvador.    Na tarde

Por dívida, mansão de Cafu em Alphaville é leiloada por R$ 25 milhões

São Paulo – A mansão do ex-jogador Cafu na região de Alphaville, região nobre da cidade de Barueri, na Grande São Paulo, foi leiloada judicialmente por R$ 25 milhões por causa de uma dívida estimada em R$ 9,5 milhões. A casa, avaliada em R$ 40 milhões, foi adquirida pela CAS Participações e Administração de Bens

”Ninguém quer um juiz robô”, diz Bandeira de Mello ao defender estruturação para uso da inteligência artificial no judiciário

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) têm avançado no diálogo com as big techs e startups para desenvolvimento e implementação de ferramentas tecnológicas e de inteligência artificial no judiciário brasileiro. Nesta terça-feira (5), no painel "Caminhos da Eficiência do Poder Judiciário" do 17° Encontro Nacional do Poder Judiciário, o