Disputa dos direitos de Taiwan por EUA e China marcam início de mais um capítulo da Guerra Fria 2.0

Publicado em

Tempo estimado de leitura: 6 minutos

A visita da presidente da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, a Taiwan deu início a mais um capítulo da Guerra Fria 2.0 e aumentou as tensões entre o país, a China, e os Estados Unidos. Desde quinta-feira, 4, os chineses começaram a realizar manobras militares em torno da ilha e, pela primeira vez, mísseis sobrevoaram as dependências da nação autônoma, informou a imprensa estatal. Nenhum dos dois países confirmaram formalmente a informação. Contudo, o ministério da Defesa de Taiwan disse que aviões de combate e barcos chineses cruzaram a �??linha mediana�?� do estreito que separa a ilha da China continental. Para entender a situação atual, é preciso voltar ao passado. O conflito entre as nações asiáticas é antigo, acontece desde o fim da guerra civil chinesa em 1949 e já foi cenário de três crises militares. A primeira, quando as forças comunistas de Mao Tsé-Tung conseguiram afastar os nacionalistas de Chiang Kai-shek, que se instalaram em Taiwan. A China comunista respondeu com bombardeios de artilharia contra o arquipélago e tomou as ilhas Yijiangshan, que ficam 400 km ao norte de Taipé. A crise quase provocou um conflito direto entre chineses e os Estados Unidos.

O segundo confronto aconteceu em 1958, quando as forças de Mao bombardearam Kinmen e Matsu visando expulsar mais uma vez as tropas nacionalistas. Temendo que a perda das ilhas resultasse na derrota dos nacionalistas e na tomada de Taiwan por Pequim, o presidente dos Estados Unidos, Dwight D. Eisenhower, ordenou que os militares americanos escoltassem e reabastecessem os aliados taiwaneses. Sem conseguir tomar as ilhas próximas de sua costa nem derrotar os nacionalistas com seus bombardeios, Pequim anunciou um cessar-fogo e depois um status quo de tensão foi estabelecido. A terceira crise aconteceu 37 anos depois, em um período em que as nações mudaram drasticamente. A China iniciou um período de reforma e abertura ao mundo, e em 1971 substituiu Taiwan na Organização das Nações Unidas (ONU) e quase toda comunidade internacional adotou a política de �??Uma só China�?�, que exclui as relações diplomáticas com o governo nacionalista. Enquanto isso, Taiwan começou a evoluir para uma democracia, o que resultou no desenvolvimento de uma forte identidade taiwanesa, diferente da chinesa. Apesar de não reconhecer a região como um país e em 1979 terem rompido relações diplomáticas com Taiwan e reconheceram Pequim, Washington continuou sendo o principal aliado de Taiwan e seu principal fornecedor de equipamentos militares. Desde então, a China comunista tenta reunificar as regiões com a política nomeada como �??Uma só China�?�. Por trás destes confrontos existem três pontos centrais em jogo: politica, geopolítica e economia.

Imagem

Nancy Pelosi desembarcou em Taiwan na terça-feira e aumentou a tensão entre Estados Unidos e China. Ela está de roa na foto �??Reprodução/Twitter/@SpeakerPelosi

�??Taiwan é uma grande democracia. Para os Estados Unidos é importante ter uma nação econômica e militarmente forte para conter a expansão da China na Ásia�?�, explica o doutor em Relações Internacionais Igor Lucena, lembrando que desde que a guerra civil da China acabou, Taiwan nunca fez parte do governo comunista. �??Quando falamos da situação econômica de Taiwan, estamos falando de um grande desenvolvedor de nano e micro-tecnologia�?�, acrescenta. Lucena diz também que há uma dependência mundial da economia de Taiwan do ponto de vista de microchips. �??Eles estão em uma vanguarda superior a outras nações�?�, resume. O mundo vive, atualmente, um momento de crise com a escassez de semicondutores. �??Para a economia americana é fundamental que essa tecnologia não fique nas mãos dos chineses�?�, conclui. O cientista político Leandro Consentino explica que é importante para os americanos terem esse aliado porque Taiwan é �??um enclave importante do ponto de vista de trânsito internacional e de produção�?� e que a conquista do território pelos chineses não é benéfico porque eles �??não querem um expansionismo e imperialismo chinês para outras áreas�?�. �? medida em que se tem uma nação buscando sua economia e não dando vasão para um imperialismo chinês, �??os EUA vão apoiar esse pleito para evitar o expansionismo�?�, explica. Além disso, a região de Taiwan é uma grande saída para o mar do sul da China, �??importante para quem buscar atacar a China ou montar uma base�?�.

Os especialistas ouvidos pela Jovem Pan discordam da tese de que a visita de Pelosi a Taiwan tenha sido imprudente. �??Em política não há momento inoportuno e coincidência�?�, diz Lucena. �??Os Estados Unidos sabem que Xi Jinping está em crise�?�, afirma o professor, acrescentando que o país pode ter problemas no setor financeiro devido ao crescimento chinês que está menor do que o esperado e aos problemas imobiliários que tem enfrentado. �??Os norte-americanos sabem que o presidente chinês não vai querer se meter em um conflito que pode piorar a economia chinesa e colocar em xeque sua liderança�?�, explica. Para ele, �??a visita foi feita e um momento estratégico�?�. Consentino acrescenta dizendo que Pelosi não é qualquer pessoa. �??Ela é a terceira na linha de sucessão de Joe Biden�?�, presidente de um país que é �??um dos mais importantes do ponto de vista militar e econômico�?�. Além do fato de que ela é �??defensora dos interesses de Taiwan�?�. O cientista político também defende que a visita a Taiwan tenha sido de caráter pessoal e uma forma de dizer que os EUA �??não vão mais tolerar a ascensão de países autoritários sobre regiões próximas�?�, se referindo ao conflito que acontece no Leste Europeu desde 24 de fevereiro, quando a Rússia invadiu a Ucrânia.

míssil chines japão

China disparou míssil em direção a Taiwan em resposta a visita de Nancy Pelosi a ilha �??Noel Celis / AFP

O atrito de Pelosi com a China não é recente. Ao longo de sua carreira, ela não perdeu a oportunidade de repreender Pequim pelo que considera um histórico sombrio em matéria de direitos humanos e democracia. Ela já denunciou repetidamente o que chamou de �??massacre�?� de 1989 na Praça da Paz Celestial contra manifestantes pró-democracia, e acusou o serviço de segurança chinês de realizar execuções secretas. �??Os direitos humanos do povo chinês não são um assunto interno�?�, declarou ao visitar a ilha. Sua viagem é vista com maus olhos pelos chineses, que temem que Taiwan se torne independente e outros países reconheçam isso. �??A visita de uma pessoa de alta representatividade é vista como uma intromissão no assunto interno da China�?�, diz Consentino, para quem há um peso importante nesta agenda. �??Mostra que Taiwan é uma coisa e China é outra�?�. Além disso, o especialista diz que uma possível independência da região enfraquece o pleito chinês. �??O grande sonho de Xi Jinping é a grande unificação chinesa. Isso já foi parcialmente feito com Hong Kong e Macau�?�. Lucena pondera que o enfraquecimento da China diminui sua capacidade de expansão e abre possibilidade para a �??independência de outras regiões�?�.

 

Apesar das últimas manobras da China, os especialistas não acreditam na eclosão de um conflito armado. �??Estamos assistindo mais um capítulo da Guerra Fria 2.0�?�, diz Lucena. �??�? difícil que um conflito armado ocorra de maneira direta�?�, pontua Consentino. �??Na guerra fria já se teve essa problemática de que as potências nuclearizadas não se enfrentam diretamente, exatamente pelo risco de uma hecatombe�?�, acrescenta o cientista político. Para ele, o que podemos imaginar são mecanismos de sanção como vemos na Rússia. Na sexta-feira, 5, a China sancionou Nancy Pelosi e sua família. �??Com esta visita, Pelosi interferiu gravemente nos assuntos internos da China e minou seriamente a soberania e integridade territorial�?�, o que levará Pequim a �??impor sanções a Pelosi e sua família imediata�?�, anunciou o ministério das Relações Exteriores da China, sem revelar mais detalhes. Outra possibilidade para qual ele alerta é a de conflitos indiretos como o �??fornecimento de armamentos para que Taiwan possa se defender�?�. Lucena prevê que o que devemos ver nos próximos dias é a China, que tem um poder militar forte, dando a entender que �??se quisesse atacar Taiwan poderia fazer isso a qualquer momento�?�.

Mesmo que não acreditem que um conflito direto vai acontecer, os especialistas destacam que qualquer instabilidade entre China, Estados Unidos e Taiwan é mais um problema para o cenário mundial, porque estamos saindo de uma pandemia que desestabilizou muitas áreas e, em sequência, já nos deparamos com uma guerra que custou muito do ponto de vista da economia �?? as principais consequências são o aumento da inflação e do desemprego no mundo inteiro. �??Mais uma instabilidade em uma região tão importante e estratégica vai gerar um problema ainda maior e dificultar para países emergentes como o Brasil�?�, diz Consentino. Lucena acrescenta que a imposição de sanções, um desdobramento que acredita ser possível, �??gera volatilidade nos mercados e aumentam os preços e inflação no planeta inteiro�?�. Por isso, diz, �??as consequências para o mundo podem ser por essa linha�?�.

Que você achou desse assunto?

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

- Publicidade -

ASSUNTOS RELACIONADOS

Incerteza marca disputa de Biden e Trump a seis meses da eleição

FERNANDA PERRINWASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - Joe Biden está, ao mesmo tempo, 11 pontos à frente de Donald Trump e 18 pontos atrás. A seis meses do pleito, o roteiro da eleição americana poderia ser um filme sobre um multiverso -porque quase tudo é possível e porque o público está exausto da fórmula. O interesse na

Israel anuncia fechamento de passagem de fronteira com Gaza após ataque com foguetes

O Exército israelense anunciou neste domingo (5) o fechamento da passagem Kerem Shalom que dá acesso à Faixa de Gaza – e por onde entra a ajuda humanitária – após um ataque com foguetes.”Cerca de dez projéteis foram disparados de uma área adjacente à cidade de Rafah em direção à área de Kerem Shalom. A

Hamas exige fim da guerra em Gaza para aceitar acordo com Israel

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um membro do alto escalão do Hamas afirmou neste sábado (4) que o grupo não aceitará, "sob nenhuma circunstância", um acordo de trégua na Faixa de Gaza que não inclua explicitamente o fim da guerra, condição recusada por Israel anteriormente. Representantes do grupo terrorista e do governo israelense retomaram negociações