Recentemente, vários comentários surgiram sobre a morte de Silvio Santos, onde figuras como o presidente Lula e Pedro Bial expressaram suas opiniões. O presidente Lula mencionou que o falecimento de Silvio Santos representa o “fim de uma era na comunicação do país”. Pedro Bial acrescentou que o meio de comunicação que Silvio Santos criou não se identifica mais com a modernidade, sendo oportuno seu afastamento para que outros possam seguir adiante.
É crucial refletir sobre o significado que Lula atribui à “era na comunicação” mencionada. Quem compõe esse “nós” mencionado por Bial, e qual o caminho que se deve seguir após a saída de Silvio Santos, um ícone presente nas TVs abertas e plataformas concorrentes? Essas ponderações são relevantes, pois Lula e Bial não representam a maioria da população que via Silvio Santos como parte de seu cotidiano.
Silvio Santos, mais do que um apresentador, era um empreendedor da radiodifusão. Sua história reflete a estreita relação entre o Estado e as comunicações, evidenciada por suas conexões políticas e econômicas ao longo dos anos.
Um marco importante foi a obtenção da concessão para um canal de televisão no Rio de Janeiro em 1975, durante a Ditadura Militar, o que resultou na criação da TVS. Nesse mesmo período, ele já possuía metade das ações da TV Record de São Paulo, consolidando sua presença no setor.
É essencial considerar a evolução do panorama televisivo brasileiro e as transformações ao longo das décadas. A sociedade atual demanda mudanças e adaptações que nem sempre estão alinhadas com o legado deixado por figuras como Silvio Santos.
A análise da comunicação televisiva no Brasil envolve não apenas o aspecto tecnológico, mas também aspectos sociais, políticos e culturais. A diversificação das mídias e o surgimento de novas plataformas impactam diretamente a maneira como as pessoas consomem conteúdo e interagem com a televisão.
Portanto, é fundamental refletir sobre o papel dos grandes comunicadores do passado, como Silvio Santos, e o impacto de suas ações no cenário atual. O desafio reside em preservar a essência da comunicação televisiva, ao mesmo tempo em que se adapta às demandas e expectativas de uma sociedade em constante transformação.
Silvio Santos, conhecido por controlar totalmente uma emissora de TV e metade de outra, gerenciava o programa que levava seu nome nas TVs Record e Tupi, em São Paulo, e na TV Tupi do Rio de Janeiro, através do aluguel da grade de programação, o que é considerado ilegal.
Na década de 1980, ainda durante a Ditadura, Silvio Santos obteve as concessões da Tupi (São Paulo), TV Continental (Rio de Janeiro), TV Piratini (Porto Alegre) e TV Marajoara (Belém), consolidando-se como um dos principais radiodifusores do Brasil antes mesmo da redemocratização do país.
Na época, o Sindicato dos Radialistas de São Paulo criticou fortemente a situação, destacando que um dos ganhadores das concessões não deveria participar da licitação devido a impedimentos legais. A legislação vigente proibia que um único proprietário tivesse duas concessões no mesmo estado, o que foi contornado por Silvio Santos através de testas de ferro, como apontado pela pesquisa Monitoramento da Propriedade da Mídia (MOM-Brasil).
Ao refletirmos sobre o significado de “fim de uma era na comunicação” conforme mencionado por Lula e Bial, em 2024, percebemos que a era que propiciou a ascensão de Silvio Santos como radiodifusor ainda perdura. A importância de um mito muitas vezes está no que ele esconde, mais do que no que revela. A continuidade do modelo de radiodifusão nacional massiva moldado na ditadura civil-militar ainda se faz presente.
Em relação à concentração da propriedade na radiodifusão, a recente sanção, pelo presidente Lula, da Lei 14.812/24 em janeiro deste ano evidencia a permanência dessa “era”. A lei ampliou os limites de concessões de rádio e TV por grupo, permitindo um maior controle. A presença de interesses ligados a grupos políticos nesse cenário destaca a complexidade do panorama midiático atual.
Quanto à prática de atos ilegais e ao controle de propriedade de radiodifusão por políticos, em desrespeito à Constituição de 1988, tais questões continuam presentes, com a presença de parlamentares vinculados a emissoras de TV no Congresso Nacional. Isso evidencia um cenário onde relacionamentos entre política e mídia são intrínsecos, suscitando reflexões sobre a influência dessas conexões na sociedade contemporânea.Líderes políticos em níveis local, regional ou nacional são frequentemente figuras poderosas na mídia. As eleições municipais, que estão próximas, tornam-se foco central tanto em cidades menores, conhecidas como “eleições de rádio”, quanto nas capitais, onde se destacam nas grades televisivas. Nomes como Datena, da Band em São Paulo; Jorge Wilson Xerife do Consumidor, da RecordTV em Guarulhos-SP; Paulo Martins, da Rede Massa, e Cristina Graeml, da Gazeta do Povo, em Curitiba; Alvaro Damião, da TV Alterosa, em Belo Horizonte; Jefferson Lima da TV Grão Pará, em Belém; Airton José e Ricardinho, da Rede Massa, em Foz do Iguaçu; Fernando Veloso, da TV Correio, e Matheus Ribeiro, da Record em Goiânia, surgem no cenário político, demonstrando a forte ligação entre rádio e televisão e a esfera política.
A relação dos donos de mídia com questões políticas controversas muitas vezes fica evidente, como no caso de Silvio Santos ao usar o SBT para promover a reforma da previdência de Bolsonaro. Isso revela a significativa influência política e econômica da mídia privada na agenda nacional, refletindo em debates sobre direitos trabalhistas. Nomes como Rede Massa, Rede TV e Jovem Pan seguem como agentes que moldam opiniões e discursos na esfera midiática brasileira.
O uso da televisão e do rádio como plataformas para disseminação de discursos preconceituosos é uma preocupação constante. Silvio Santos, por exemplo, foi conhecido por abordagens questionáveis em seus programas dominicais, refletindo um padrão que permeia a programação de entretenimento. A presença dessas narrativas em diferentes contextos midiáticos, como novelas, talk shows e realities, evidencia a importância de se analisar criticamente os conteúdos veiculados, atentando para a disseminação de ideias prejudiciais à sociedade.
A morte de Silvio Santos num momento político conturbado desperta reflexões sobre seu legado e sua influência midiática. Sua capacidade de se comunicar com diferentes camadas sociais, do populares ao elite, revela nuances complexas de sua trajetória. Apesar de críticas, o SBT foi palco de momentos que promoveram inclusão social em sua programação, contrastando com outras abordagens da mídia. O debate sobre o papel dos meios de comunicação e sua relação com a democratização do acesso à informação ganha relevância frente a figuras como Silvio Santos e suas estratégias de comunicação.O Concurso de Transformistas era um evento cheio de cor, brilho e representatividade que cativava a atenção das famílias. De forma semelhante, as “colegas de auditório”, mulheres de baixa renda, viam-se representadas nas brincadeiras dominicais, em contraste com a representação das empregadas domésticas uniformizadas atendendo aos caprichos das personagens como as Helenas do Leblon de Manoel Carlos.
Não se trata aqui de justificar as ações que expunham crianças à sexualização precoce, como ocorria também em programas como o de Raul Gil, transmitidos pelo SBT. É importante observar o incômodo seletivo que gera repulsa a Silvio Santos e à TV aberta em geral, revelando um desprezo enraizado pelos pobres e pela cultura popular. Esse sentimento muitas vezes confunde a indignação com discursos de ódio com um ódio direcionado à televisão e ao rádio. A precarização da TV aberta em escala global fez dos discursos de ódio uma ferramenta vital para sua sobrevivência.
A erosão dos meios de comunicação estatais mundo afora, somada à inviabilidade do financiamento publicitário local, deixou a política como principal sustentáculo das emissoras de TV e rádio em cidades pequenas. Os traços socioeconômicos herdados pela sociedade desempenham um papel crucial na propagação do discurso de ódio midiático, especialmente quando os mesmos proprietários de terras também detêm meios de comunicação. O legado perdura mesmo após a saída de figuras como Silvio Santos, em uma cadeia de poder influenciada por interesses e visões que desumanizam grande parte da população.
Ao discutir visibilidade, é comum destacar dados de audiência que sugerem uma mudança nos hábitos de consumo, com o predomínio dos celulares sobre a TV e o rádio, além da desconexão entre essa mídia e as gerações mais jovens. Contudo, a audiência e o financiamento maciço de programas como Big Brother Brasil não refletem a subnotificação e a invisibilidade das emissoras de TV e rádio locais, nacionais e regionais.
A ascensão de figuras televisivas a cargos políticos de destaque e a expansão da extrema-direita em nível global têm na TV aberta um importante palco de projeção. Personalidades como Bolsonaro e Milei exploraram polêmicas e discursos moralistas para conquistar espaço, enquanto líderes como Trump e Zelensky alcançaram o poder impulsionados pela visibilidade televisiva. As emissoras locais enfraquecidas abriram espaço para discursos políticos sem filtros, ao passo que as plataformas digitais têm servido como retransmissoras, desprovidas de regulação pública.
Diante desse cenário, a renúncia do Estado à comunicação pública e gratuita, aliada ao uso do discurso fascista como estratégia de conquista de audiência, tem moldado a configuração da TV e do rádio contemporâneos. A união entre tradicionais meios de comunicação e plataformas digitais tem gerado um ambiente propício para a disseminação de ideologias extremistas, refletindo a urgência de repensar o papel e a responsabilidade dos meios de comunicação na sociedade.A televisão na frente do porteiro transmite em qual canal? Aproxime-se de seus filhos que não assistem TV e pergunte se eles conhecem o Xaropinho. Quando Silvio Santos se vai, permanecem os memes, áudios, vídeos-denúncias… toda a programação da TV aberta sendo distribuída em plataformas desreguladas, sem responsabilidade social ou direcionamento. No entanto, continua sendo um meio de comunicação social.
E se o tema for regulação? E se tanto Lula quanto Bial mencionarem a extinção da comunicação como serviço público essencial para a democracia? Silvio Santos falece, alguém que prestou muitos favores ao sistema político, porém, a troca de favores clientelistas entre o sistema político e midiático persiste no país. E se também morrerem as precárias e nunca regulamentadas diretrizes do capítulo de comunicação da Constituição Federal? A abrangência e a estrutura das emissoras de rádio e TV espalhadas por todo o país, juntamente com a expertise na criação de conteúdo audiovisual, com grandes ou pequenos recursos, constituem um poderoso instrumento de enfrentamento à desinformação e progresso social.
Recentemente, na UFRJ, ocorreu a defesa da primeira dissertação de um estudante indígena no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, abordando a Rede de Radiofonia Indígena e a importância da rádio para a existência (e resistência) dos povos durante a pandemia na região do Rio Negro-AM. Conhecemos, através de várias notícias, os esforços de Elon Musk em difundir a comunicação privada da Starlink como rede principal de comunicação em todo o Brasil. Na região amazônica, também sabemos quem são seus parceiros nessa empreitada. Pessoas que matam pessoas. Mais uma vez: pessoas que se esforçam para desumanizar muita gente. Recentemente, no RS, vimos os antigos radinhos de pilha e a rede pública da EBC sendo usados como via de emergência para enfrentar uma das maiores crises climáticas já registradas. Um belo trabalho da Secretaria de Comunicação e da rede de emissoras de rádio.
Será que esta era está se despedindo com a partida de Silvio Santos? E o que permanece? Resta um Ministério das Comunicações fraco, vexatório e entregue às artimanhas políticas, enquanto o esforço do que temos de mais estruturado, capacitado e democrático se concentra na vulnerável figura institucional de uma secretaria ligada à presidência. Precisamos de uma política pública coesa e socialmente orientada, precisamos de um ministério de verdade, e não de uma improvisação com status de ministério sem a devida estrutura.
Na realidade, a “era” que Lula, Bial e tantos outros visionários do futuro sem TV afirmam que findará com a morte de Silvio Santos parece uma figura mitológica que deseja ser imortal, mas finge estar morta. A principal regulação do sistema de rádio e televisão brasileiro ainda é regida por uma lei de 1962! O capítulo de Comunicação da Constituição de 1988 continua aguardando uma atualização. Esta era só poderia (ou poderá ainda?) chegar ao fim com a regulamentação democrática dos meios de comunicação, garantindo um ambiente comunicacional sem controle oligopolístico, sem dinastias, e aproveitando a vasta estrutura e conhecimento que já possuímos em prol da sociedade, com diversidade e pluralismo. Não precisamos acabar com a TV, precisamos resgatar sua essência social e entoar, como Silvio Santos, “TV aberta, é coisa nossa. E o rádio todo, é coisa nossa!”
Suzy dos Santos é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Paulo Victor Melo é integrante do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Artigo transcrito do Le Monde Diplomatique Brasil.
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